Sobre mim ...

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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Poderia dizer-te, palavras que nunca te direi ...

Poderia dizer-te
dos pássaros mortos que encontrei naquele dia quando abri a porta da casa fechada há alguns anos. Do dardejar de suas asas por dentro do meu peito…
Do pó que contornava cada canto, cada estrado, cada flor inanimada p’la secura. Ou ainda da água enferrujada que, ao abrir a torneira, tingiu de ocre meus dedos.
Poderia falar-te do relógio de cuco que me olhava, como dantes, por entre as duas portas das salas. Mudo, contudo. Enclausurado no escuro do seu mundo …
Do lambrim do hall de entrada feito a custo - era tão escasso o dinheiro naquela altura -, por um artista da época sobre o estuque fresco, num imitar perfeito, dos nós, dos lenhos, dos veios, de troncos de madeira. Entroncados, ombreados, uns nos outros.
A inspiração viera-lhe dos tempos em que, como estivador, viajara nos porões dos barcos, onde à chegada, descarregava em ombros o que o navio levava, pelos portos de Lisboa a Veneza …
Poderia dizer-te
de como cresci ali, naquela casa, agora abandonada; onde aprendi a ouvir os cantos de todas as aves e mais uma: domésticas, de gaiola ou até capoeira. E daquelas que me visitavam p’la manhã e p’la tardinha e trinavam só para mim, então menina, cânticos em códigos só nossos.
Quase divinos, digo-te agora.
Eram, de todas, as que mais apreciava. Respiravam liberdade e, sem que ninguém soubesse, traziam-me notícias dos que no antes de mim, haviam rumado mundos ao mundo …
Dos que os vivos, diziam que estavam mortos (não nunca em mim ...).
Só a carne, porque o que deles emanara, perdurava na matriz cristalina da minha alma … cada gesto, cada palavra… até o barulho distinto dos passos … e a todos amava. E com todos me amparava … tios velhos, vizinhos, avós e primos …
Poderia dizer-te
da companhia que me fizeram os meus bichos (e tantos eram). Os da seda, que alimentava com folhas verdes de aroeira ….
o meu ouriço-cacheiro com quem me cruzei um dia e, num ápice tresloucado, salvei da roda de carro. Depois, afaguei-lhe os espinhos, alimentei-o a pedaços de pêras, de maças, que desviava da cozinha até ao dia em que, provavelmente cansado de tanto desvelo e afago, se escapuliu sorrateiro em busca do seu destino….
Deixou-me, tal como tu, uma lágrima silenciosa… e a percepção de que na vida, tudo o que chamamos de nosso, é efémero, transitório… dura enquanto dura. Apenas isso!
Ou dos porquinhos-da-índia … mal cheirosos, eu sei. Mas tinham um pelo tão lindo e um olhar que me esquentava a alma, de um castanho melado …
ou ainda dos outros, os da pocilga, que viviam e morriam para que eu pudesse viver… transitória a sua vida, mas amava-os de igual maneira. E tratava-os se adoeciam. Por eles aprendi até a dar injecções … a eles, e às ovelhas… aos gatos e aos cães; e mais houvessem, trataria de igual maneira …
Poderia ainda falar-te
do dia em que as águas subiram e, quando acordei de manhã, na beira rio e por todo o lado, só se viam destroços do que foram vidas dos que comigo comportavam, sem comportas ou barreiras, nas aldeias lado a lado.
Do dia em que tremeu a terra, em que dos altares do céu, os deuses se exaltaram… e que, na mesinha de vidro, um peixinho de barro, tilintou-me o aviso … acreditarias, pois?
E na verdade assim foi!
A um peixe de barro a uma mesa de vidro, devo o facto de ainda estar viva …
Poderia contar-te ainda
dos dias em que o despudor dos homens retalharam no toque e no abuso a inocência do meu corpo, tomando os botões de rosa que anunciam os seios, no argumento de que eu, a criança, era a “feiticeira” …
Se consumado o acto? Não! Sabes… Deus devia estar por perto…E alguém me libertou na hora derradeira...
E desta mágoa, que até hoje perdura, do quanto me senti impura. E do nojo que sentia …de um bafo que fosse, de ver um homem a menos de meio metro… insegura, sim!
Poderia contar-te
se a pressa não fosse sempre o teu maior alimento, de como cresci por fora, de uma beleza trigueira, nesta altivez de porte, neste olhar que intimida… E resiliente a outras quaisquer emoções, que não a partilha inteira com a natureza primitiva de plantas e animais …
Em suma, poderia ter-te contado a história da minha vida até ao dia em que a força centrípeta te colocou nuclearmente no certo do meu destino. E me fez confiar, acreditando, que o amor que emergia, que tão profundamente sentia, bastaria para nós dois …
se te amava de forma desmedida, de forma incontrolada …
se te daria a chave e o cofre de todos os alfabetos. Se te sonhava acordada, e me via solta e livre, em loucas correrias por serranias e prados...
Eram os teus braços que buscava. Tão-só e apenas... sem porquês, indagações, reticências, pontos finais ...

Poderia sim…
Todavia, em certos momentos, duvido até que, aos teus ouvidos, as minhas palavras tivessem o mesmo efeito que uma missa dada nos dias de hoje, mas liturgiada em latim… abanarias a cabeça, e dirias "amen", que sim…
Assobiarias e passarias adiante … ou estou errada e me ouvirias atentamente?

Diz-me … o cansaço está, definitivamente, a tomar conta de mim!
... Fazes-me falta, preciso de ti!

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...