Um afluxo de ruídos crus fustigava-lhe a íris. Os olhos, indiscerníveis. Dizia, nesses momentos que, a contento de vontade, não duravam mais que fracções de segundo, minutos, no pior dos casos,
que não estava, que não sentia, que não era,
importava inculcar os passos em solo firme, dar sentido rectilíneo à vida, ir além do mero e rotulado estado de paroxismo - mister maior de incensar a alma ao afloramento de lábios, no ébrio e sadio suco do fruto das videiras;
Importava, antes do mais, antever réstias de esperança à face dúctil das vides, garantir a valentia dos bacelos. Planear a poda, do que, não sendo de si, lhe recurvava o corpo.
Do podar da vinha, dizia-se, dependia a qualidade genuína da uva, a magia da rebentação, a novidade... E ela, não mais que parte ínfima da natureza, atentava e pulsava, a vogar no rumor e ao sabor dos ciclos das sementeiras e das safras. Assim se via e desejava ser.
Era, pois, nesse estado anímico que Eva, galhardamente, se tomava de forças, intentava de burnir esquinas ásperas das pedras que pisava, que a pisavam, no chão basáltico das marés altas.
Uma arritmia obtusa toldava-lhe a visão, o coração em descompasso… Apenas um músculo, dizia de si para si.
Sem palavras,
em presciência cauta (ou terapia benigna), dava consigo a pensar que, maior que o vento labial das tempestades azoto, a floração dos tempos. O ciclo das marés. Adivinha-se, ela própria, regressada de um arrepio polar marcado no calendário de parede, um tempo tomado a pulso aos poros húmidos da pele. Dia após dia, dizia-lhe, como rezando, das manhãs de pão, pavio e lume, do iodo higiénico da rebentação,
dizia-lhe, em segredo, quase sálmica,
Regresso, flor, devolvo-me à curva onde o horizonte se demora suave, lugar poente revestido de existência vivaz, de que me falas e de que eu acredito (porque te acredito), sem que, contudo saibamos, ambos, dele, o lugar exacto,
regresso, na leveza deste instante, na volta anunciada pelas andorinhas, destituída de póstumas vontades, a madrugar em lume, púrpura, no branco leitoso dos galhos mais subidos, dos limoeiros ininterruptos que me entram pela janela, e destes, enlaços nas roseiras cíclicas, nas videiras insondáveis, de teu e meu quintal,
regresso, talvez porque palpito intenso e forte, o chamamento mudo dos teus lábios - um arco cego de luz, uma rota navegável, um traço, tão, mas tão profundo, quanto fino, delicado, um rasgão de verbo em minha pele, a carvão-anil-pastel, a desaguar em fontes de beber, cristalinas, içadas à gávea dos barcos, pousio de aves madrugadoras - vejo-as já, uma mão minha a fazer de pala, fronteiriça à face. Vejo-as serenas, íntimas, quiçá, a desenharem com os bicos estrelícias no beiral antigo da morada de meu corpo (os meus seios erectos, o arrepio de espinha...);
Regresso, flor, numa cadência de linhos e de sargaços, porque te escuto,
e me sei,
mínima, tão mínima, quase um nada,
recrudescida em frémito, a crescer por dentro, vagarosa claridade, nos sons discordantes de uma melodia uterina, esta arritmia que não me larga. A mesma de que se fazem vivos os corações dos ciprestes, e de que se farão um dia, nossas tábuas da última morada, e de que se fizeram antes, esguios e nus, galgazes, os berços dos meus braços
em espera pelo retorno das neblinas, manto nevado, agasalho de colina.
Impregnada de ti, desponto regressada do Inverno que finda, a ponto lágrima, de tez brevemente entristecida. Dizes-me triste e eu concordo. Esperas-me à proa do derradeiro barco que nos conduz ao remanso buliçoso dos silêncios, turbilhão confluente das nossas águas. Sorris e quase que me acredito;
Detenho-me já perto, e tão longínqua afinal. Vejo-me aqui, do outro lado do espelho, cravada na falésia, a pleitar arengas iluministas para me sentir viva, soletrada clandestina ao desejo impúdico de te tocar a pele da alma, ainda que seja apenas por um só e breve instante. Demoro-me seduzida a ensaiar sinais de morse, a morder os dedos das unhas e os seus contrários, estes dedos onde pousaram, em afogo, a espuma das horas vagas, de mim, a assestar luminosa pena, pássaro que sou, exímia ave de ravina a medir distâncias da linha de água à escarpa...
Sem que me saiba, ouso transportar estrelas do mar para para o ponto em que me encontro, para que te ilumine, barco na bruma, no desaprumo das paixões. E te traga a mim (teu porto). E me conduza a ti (teu berço)...
Regresso, flor,
porque nunca parti, sem saber que estavas a meu lado, sem saber que não necessitávamos de barcos nem pontes, porque ambos somos águas do mesmo rio, e, o mar, ai o mar, meu amor, é destino inevitável de quem fermentou o trigo em solicitude despida, a pulsos abertos, com a foice da vida, chuva dulcificada, e, por fim, ao sol poente, bebeu, sem medo, de bica aberta, o vinho mosto da terra…
Fotografia da autora (Peniche/Baleal)