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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

...por um fio, no horizonte



Desceu a escada já cega a tactear a angulometria das esquinas. A aplanar o rugoso das caliças. Um frio mortífero tomou-lhe conta dos olhos em negação do corpo. Do cimo, de onde vinha, os cheiros esboteavam-lhe, em perseguição, o melhor, o mais recôndito dos sentidos. Alguns resquícios rançosos dos fritos de consoada, algumas verduras perdidas na cesta das compras, algumas frutas engelhadas sem novidade. Era Inverno, na estação dos pássaros, mas não sabia. Perdera a noção do tempo, do espaço, da madrugada. Perdera o respeito por si.
No micro-ondas o bolor em quarto-crescente, no prato preparado em esmero, apoderava-se de todo o espaço, numa amálgama indecifrável de verde mortiço. Estreitava-se pelas frestas infectas, derramava na bancada, pedra. Dizia por vezes, a quem a visitava, que poderia ter sido pedra de ara. Ali debruçada, fronteiriça à vidraça, adormecera, noite após noite, vezes sem conta, de cotovelos hirtos e lábios roxos. Em certos dias, um pérola tilintava a tijoleira. Era então que despertava. A custo retomava a verticalidade das árvores, atravessava o hall que lhe parecia inevitavelmente desproporcionado, o tecto a achatar-lhe as têmporas, a esvaziar-lhe as vontades, os passos abafados pelas passadeiras gastas, e encontrava o leito.

Não se recordava quantos meses, quantos anos, quantos séculos, quantas Eras, assim permanecera. Quantos ciclos menstruais se haviam abatido sobre as searas para que pudessem recobrir-se de papoilas. Alheara-se de tudo centrada num ponto distante e indistinto do infinito. A entrega total, sem reservas, sem exigências, sem cobranças.

Passou por ela uma aragem fina, via láctea, relento de manhã embrionária. Viu-a branca, tomou-lhe o pulso. Em silêncio, lambeu-lhe a pele, soprou-lhe
uma réstia de sol
entrelaçou-lhe a primeira papoila
a anelar-lhe dedos esguios - na linguagem das folhas, num memorial de rosas, fitou-a, devolvendo-lhe o brilho da própria imagem;

Fê-la água,
na humidade fina e penetrante da estação calmosa, neógama em alma, por um fio, a desaguar, sereníssima, no horizonte das palavras.


Imagem: Katia Chausheva

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...