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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 12 de junho de 2011

Pássaros

Chegaram quatro dias antes da tempestade. Traziam sangue colado nos bicos e as asas algo incertas nas plumagens conhecidas. Voaram em círculos horas a fio até atinarem com os ninhos, e, ainda assim, incrédulos, acercaram-se ao de leve. Aos poucos foram tomando noção de território até que deixamos de os ver. Fronteiriços, os arrozais, tomavam conta do que antes fora terra de pão e alvoradas. Como se pássaros fossem, iguais, as abelhas, sem mestra à vista, voavam sobre os botões carnudos dos maracujás aveludando o ar num murmúrio calmo. Depois, como que impulsionados por qualquer força desconhecida, os zunidos tornaram-se mais largos, mais estridentes,  e o ar tomou a cor dos voos crepusculares.
Foi quando os avieiros pressentiram a erosão das horas gastas na revelação de ocupações palafíticas à cota do rio. Rápidos, recolheram os barcos e as redes. A mulher voltou ao cais, uma e outra vez, todas quantas as necessárias para resgatar os utensílios necessários à faina do dia depois. Na orla do rio as palmeiras feridas deram de verdascar as insónias das crianças que, sendo ainda ao olhar,  o foram ontem. Cada ruga a desmentir o registo inventado de nascimento. No tronco comum dos palheiros, as construções marítimas autoportantes gemiam baixinho em lágrimas salubres o sobressalto das cheias anunciadas. O lodo atascava-lhes os pés e os estrados da madeira corcomidos vergavam sobre as estacas.
Brumosa e vaga, a curva do rio, cravava-lhe farpas, insidiosa, a norte da casa do guarda-rio e a sul da várzea. A marejar-lhe as pálpebras, Helena ouviu o motor a afastar-se, até que, apenas um foco, parecia ainda falar-lhe, no pontão, do lugar da atracagem.  A noite tomou-se de chuva, na urgência de lavar os junquilhos das margens. Os peixes, em cardumes à cor da prata,  procuraram o dormitório de sempre num pneu velho, semelhante ao cortiço das obreiras. Um candeeiro sem vidro a emparelhar com outro de igual estado iluminava os desperdícios de um colete salva-vidas que não havia cumprido a função. As palafitas imaginárias, quiçá do período neolítico, ora vazias,  anunciam carne aos condores. 
No dia seguinte à tempestade os maracujás tinham retomado todas as cores rosáceas e os pássaros fruíam do brilho lavado de azeviche. Ninguém na vila falou da disputa entre a vida e morte  - existem palavras que são proibidas às gentes das lezírias.

Da luta ou do fruto, do sangue ou silêncio, a mulher sugou-os  num ritual  só dela, audaciosa e lenta,  entre os lábios, como o fruto do maracujá. Aos caroços,  recolhidos entre a polpa dos dedos, nas mãos em concha (a mesma donde ele bebera o gume das suas águas ),  dependurou-os enxameados no galho despido de uma árvore.   Depois tomou-se de uma pá e escavou um buraco até ao nível da água.

Dizem os antigos que por ali jazem os ossos sagrados. No seu lugar agora, uma capela a que devotou a trança fulva do seu cabelo... Diz quem sabe, ser a da Senhora de Alcamé.

Imagem da Net

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...