Chegaram quatro dias antes da tempestade. Traziam sangue colado nos bicos e as asas algo incertas nas plumagens conhecidas. Voaram em círculos horas a fio até atinarem com os ninhos, e, ainda assim, incrédulos, acercaram-se ao de leve. Aos poucos foram tomando noção de território até que deixamos de os ver. Fronteiriços, os arrozais, tomavam conta do que antes fora terra de pão e alvoradas. Como se pássaros fossem, iguais, as abelhas, sem mestra à vista, voavam sobre os botões carnudos dos maracujás aveludando o ar num murmúrio calmo. Depois, como que impulsionados por qualquer força desconhecida, os zunidos tornaram-se mais largos, mais estridentes, e o ar tomou a cor dos voos crepusculares.
Foi quando os avieiros pressentiram a erosão das horas gastas na revelação de ocupações palafíticas à cota do rio. Rápidos, recolheram os barcos e as redes. A mulher voltou ao cais, uma e outra vez, todas quantas as necessárias para resgatar os utensílios necessários à faina do dia depois. Na orla do rio as palmeiras feridas deram de verdascar as insónias das crianças que, sendo ainda ao olhar, o foram ontem. Cada ruga a desmentir o registo inventado de nascimento. No tronco comum dos palheiros, as construções marítimas autoportantes gemiam baixinho em lágrimas salubres o sobressalto das cheias anunciadas. O lodo atascava-lhes os pés e os estrados da madeira corcomidos vergavam sobre as estacas.
Brumosa e vaga, a curva do rio, cravava-lhe farpas, insidiosa, a norte da casa do guarda-rio e a sul da várzea. A marejar-lhe as pálpebras, Helena ouviu o motor a afastar-se, até que, apenas um foco, parecia ainda falar-lhe, no pontão, do lugar da atracagem. A noite tomou-se de chuva, na urgência de lavar os junquilhos das margens. Os peixes, em cardumes à cor da prata, procuraram o dormitório de sempre num pneu velho, semelhante ao cortiço das obreiras. Um candeeiro sem vidro a emparelhar com outro de igual estado iluminava os desperdícios de um colete salva-vidas que não havia cumprido a função. As palafitas imaginárias, quiçá do período neolítico, ora vazias, anunciam carne aos condores.
No dia seguinte à tempestade os maracujás tinham retomado todas as cores rosáceas e os pássaros fruíam do brilho lavado de azeviche. Ninguém na vila falou da disputa entre a vida e morte - existem palavras que são proibidas às gentes das lezírias.
Da luta ou do fruto, do sangue ou silêncio, a mulher sugou-os num ritual só dela, audaciosa e lenta, entre os lábios, como o fruto do maracujá. Aos caroços, recolhidos entre a polpa dos dedos, nas mãos em concha (a mesma donde ele bebera o gume das suas águas ), dependurou-os enxameados no galho despido de uma árvore. Depois tomou-se de uma pá e escavou um buraco até ao nível da água.
Dizem os antigos que por ali jazem os ossos sagrados. No seu lugar agora, uma capela a que devotou a trança fulva do seu cabelo... Diz quem sabe, ser a da Senhora de Alcamé.
Imagem da Net
Da luta ou do fruto, do sangue ou silêncio, a mulher sugou-os num ritual só dela, audaciosa e lenta, entre os lábios, como o fruto do maracujá. Aos caroços, recolhidos entre a polpa dos dedos, nas mãos em concha (a mesma donde ele bebera o gume das suas águas ), dependurou-os enxameados no galho despido de uma árvore. Depois tomou-se de uma pá e escavou um buraco até ao nível da água.
Dizem os antigos que por ali jazem os ossos sagrados. No seu lugar agora, uma capela a que devotou a trança fulva do seu cabelo... Diz quem sabe, ser a da Senhora de Alcamé.
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