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Castelo de Almourol by Enio Godoy Photography
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Enquanto
escovava os cabelos, Zaira revisitava todas as pontes da sua memória.
A cabeça tombada na posição inversa ao corpo permitia-lhe o afago da nuca
à correnteza das cerdas. Depois, amparando a cabeleira com a mão direita,
pela face inversa, percorria todo o caminho fulgurado desta, da raiz até às
pontas. Por fim, após várias e repetidas passagens, devolvia o cabelo à
posição inicial, sacudindo-o fortemente, não sem antes o acariciar, lânguida,
ungindo-o num óleo miraculoso que lhe impedia o ressequido, o espigado. O
cabelo era, porventura, o que mais cuidada em si e um
precioso bem de que, em tempo algum se separaria. Tal como o dela: o
carrapito preso com os ganchos de tartaruga, já baços, propalava em
formato de casca de caracol, da espessura maior, interior, à menor, exterior, soberbo.
A ponta, a existir ocultava-a por debaixo da primeira, num entrançado certo,
cuidado, dando mais vigor ao tom branco que
a noite se incumbia de cinzelar. Ali na intimidade das falas retirava o lenço da
sua viuvez, que a rua e os demais não haveriam, até ao dia do juízo final, de
lhe ver o tom. Ou o formato. O pudor acima de tudo, Zaira. O pudor! Dizia-se
pertença de um só homem - por ele se fizera mulher e para lhe agradar dera
ao cabelo a forma das ondas do seu mar. Nesse mar navegaram dias a fio,
extremosos, ele e ela tomados num ziguezaguear de músculos, de olhos, de vidas.
Ele e ela. Por vezes quedavam-se exaustos em fragilidades próprias e nas
complexidades das coisas simples: ora a chuva a cair impiedosa dos beirais da
casa contra as lajes da porta, num chapinhado de patos bravios, ora o canto do
vento descomprometido e livre nos canaviais das cercas dos terrenos. …
Cruzou
o umbral. Na outra margem do tempo em recta final, Egnácia trouxe-a de volta ao
presente. Passou-lhe a escova nos cabelos escassos, conduziu-a para a sala onde
tantos outros se avolumavam em risos ocasionais quando eram tomados do que
imaginava serem sonhos nostálgicos. Apegavam-se às rotinas diárias em
dissimulação de afectos como que negando cuidados terceiros, mas lá no fundo,
bem no fundo, eram as rotinas que davam tempo ao tempo. Tinham deixado de Ser.
– Quando se deixa de ser quem se é e não se consegue ser ou conviver com a
alternativa, o tempo perde a sua notável agilidade evolutiva, dissera-lhe Egnácia
certa vez. Ficara perturbada. E ela, Zaira, quem era? Ou quem deixara de ser?
Em que umbral do tempo deixara dependurada a pele ou em que silvas se rompera o
casulo antes da metamorfose das asas? Olhou-a de novo. Os olhos baços como que
a pedir pouco, quase nada. Como que a pedir desculpa porque sim, por ser um
fardo…
Naquela
manhã os pássaros estavam silenciosos no seu piar. Em demasia. Zaira retomou o fio da meada
dos dias. Ali estava a cuidar das avós dos outros, a buscar colo que lhe
amenizasse a dor da perda. Cuidadosamente, escovava-lhe os cabelos ralos e
finos. A custo tentava que se acomodassem aos ganchos que, obstinados,
escorregavam cabeça abaixo. – Ora bem, findámos. Está linda, concorda? Abanou a cabeça em
aprovação. - Obrigada.E, sem aviso: – Liso, era liso o meu cabelo, menina, tão liso como as
lezírias prateadas de trigo a chorar à fala da foice. Difícil
de prender, de se acomodar aos ganchos, à rede. Tanto que o ceifei para o
vender aos ciganos, que, de castigo, a terra fecundou-me os pés, e, às
tantas, eu e o cereal que crescia nas várzeas éramos uma seara só. Se foi o
trigo que me viu ser mulher aos braços da maré grande, se foi ali, além, nas
searas que pari os meus filhos, se foi o rio que me lavou as mãos, depois. Um
sorriso alvo brilhou-lhe o olhar, algo diabólico. Não havia arrependimento nem mágoa. A boca
enrugada revelava duas fileiras de dentes certos de fazer invejar a muitos jovens. A ela própria. Zaira não resistiu, elogiou - Que belo o seu sorriso, os seus dentes são maravilhosos,
Dª. Nazaret, são verdadeiras torres marfiniticas de um castelo altaneiro...
Cortou-lhe
a palavra: Almourol!- Conheço tão bem, mas tão bem, que nem a menina imagina.
Sou da Barquinha, da sede do concelho, - a vila mais bonita de que há lembrança,
ou melhor, era. Agora não sou de lugar nenhum e nem a minha vida pertence a
ninguém mais. Nem a filhos, a marido ou amado, muito menos a meus falecidos
pais. Estão todos mortos! Os que sim, que Deus os guarde e por eles rezei e
peregrinei anos a fio, quando já não tinha nem cama, nem casa, nem eira nem
beira. Por eles, mortos, acendi memórias e velas de aleluia em todas as igrejas
e capelas da região, da Senhora dos Remédios à Matriz de Atalaia. Na capela de
Roque Amador, ou a do Senhor Jesus, quando Deus queria e me guiava ai, lá
estava eu curvada em sua glória. E noutros dias, na Igreja de Nossa Senhora da
Conceição, Igreja Matriz de Vila Nova da Barquinha. … acho que não me esqueço
de nenhuma, menina; Bem vê, em todas lhe acendi agradeci e entreguei a minha
alma na mão gigante do Infinito. E os que não, os vivos ainda, que os matei nos meus olhos quando se esqueceram do meu nome, nome de lugar sagrado; fui-os
matando aos poucos quando, na arrogância e desvario dos obstinados ou pobres
de valores e de espírito, se apoderaram das casas, lugares de criação, quase em
ruínas, e dos terrados, lugares de vinho, azeite e pão, e dos linhos da arca
que me estavam reservados para a mortalha, dos barros da greda, das talhas de
azeite e da minha trança. Dizendo isto, Nazaret, turvou perigosamente o
semblante, agora prenúncio de trovoada. Na sala, em surdina, crescia um
canto penumbroso equiparado ao rastejar de cobras. Incomodativo. Os olhos apequenavam-se afiando-se em lâmina
contras as têmporas, a boca perdia espessura descaída em arco, o queixo
trémulo, os ombros hirtos. Da minha trança, repetia. Vendia-a bastas vezes para
lhes alimentar a boca mas não imaginei nunca que um dia seriam eles a vendê-la
para se arruinaram à mercê do vício. Vinho e drogas. Depois de África (diziam-me
que negociava em corno de rinoceronte, em presas de elefante). Foi para lá
fazer a tropa e, quando voltou, dele não restava nada se não o nome: Inácio. E o
vício. Os vícios. Logo ele que dizia “o vício não pode ser maior que o homem”. Dizia-se
negociante. Dizia-o à boca cheia, afugentava os pedintes “façam-se à vida, cambada, o que mais não falta
é trabalho”…
Vi-o a última vez, antes daquela em que o matei dentro de mim, o meu
mais velho, nas margens do Tejo, nas Festas do Rio e das Aldeias, num 15 de
Agosto. Os festejos espalhados pelas duas margens. A procissão fluvial já a
chegar a Tancos. Os barcos engalanados. Vi-o e antes não o tivesse visto. Vinha
tomado da ira, aprochou-se a mim, varreu-me a carteira, estava vazia, tinha
comprado um pão, umas migalhas tremoço, um gergelim; lançou-me um fedor de
vinho e a sentença: - amanhã volto e alguma coisa haverá de ter para me dar. Se
não a trança! Ou os dentes, que os têm bem bons ainda – hão-de valer dinheiro… E
voltou, nunca foi homem de renegar uma promessa, lá nisso saiu-me a mim. Voltou
acompanhado com quem o desviou do caminho. A tesoura da poda a que nunca se
afeiçoou ainda estava dependurada na adega. Foi com ela que levou o orgulho de
uma vida – foi o orgulho que me levou, menina Zaira… coloquei um lenço, enviuvada de
novo de uma viuvez de parto. E nova sentença: - A seguir, arranco-lhe os
dentes. Corri à adega, apoderei-me da roçadora … não me lembro de mais nada. Os
mais novos, dois, rapaz e rapariga, esses, dizem-nos na Europa, eu não sei o
que é a Europa, o mais longe que fui foi ao Arripiado, do outro lado do rio, mas
sei que deve ser um lugar de esquecimento onde há quem perca a memória e a
vontade de regresso. O chão tinha a cor das alcachofras e da beterraba. Não
percebi. Tomei-me de dois baldes e esfreguei até não ter mais pulsos. Coloquei
um lenço. Na margem do rio pedi ao barqueiro que me levasse ao castelo, pedi a
troco de um punhado de tremoço, riu-se de mim, mas levou-me, abençoado homem,
e, pergunte-me agora menina, que lhe vejo a pergunta a bailar nos olhos, em que
dia e em que data, cheguei aqui. Pergunte. Não sei, só sei que o cabelo me
chegava à curva das pernas e que os meus dentes estavam brancos, disse o Doutor,
de tantos anos a comer raízes… nunca mais voltei à Barca – era assim que se
chamava a minha terra antes de tudo isto, quando eu era princesa, mais tarde Rainha
do meu homem, e habitava o castelo. Quer
que lhe fale dele? Do castelo? Conheço-o como ninguém.
Nazaret
perdera-se de novo. Como em tantas manhãs ir-me-ia falar da Ordem de Cristo, da
Reconquista, da arquitectura militar, do Beijo do Vampiro. E dele, o Caçador de
Gergelins. Nada e crescida nas Lezírias, pouco mais do que alfabetizada, de onde lhe viera tanto conhecimento?
Encontrara-a
quando, a pretexto de fotografar o castelo na lua cheia, pernoitara
desautorizado por lá. Do afloramento granítico secular surgira sem aviso por
uma brecha imprevista qual figura do Neandertal. Apavorado, duvidou que fosse
gente. Dela só o alvor dos dentes. Estendeu-lhe uma mão cheia de tremoços e um gergelim
e o pedido: leve-me de volta à vida.