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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 17 de junho de 2020

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”



“… palerma, chapéus há muitos”…
Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação de afecto…
A história deste conta-se em meia dúzia de palavras. Comprei-o em Boston, corri o ano de 2006. Em pleno Dezembro fui para os “States” desacautelada. Se a minha avó fosse viva e me visse, dira :“tens a mania de andar em corpinho bem feito”, o que, para ela e na linguagem dela, significava mal agasalhada sem um abafo que alargasse as formas mas aquecesse a alma.
Bom, comprei-o. A ele e a uma gabardina que mantenho até hoje. Ambos e “marca”!. [tudo tem marca, costumo dizer…]. Ok. Este era de marca, mesmo. Loevenich, Caps &Acessories. Foi amor à primeira vista e para a vida.  Um investimento, portanto!
Viveu comigo e perdurou existência fora, desde então, ora para me proteger da chuva, ora para, naqueles dias soalheiro me proteger do sol. Estava ali, sempre à mão, no bengaleiro da entrada. Até que, no mesmo dia em que a Elsa (Depressão Elsa, 2019.12.20) se abateu sobre Portugal e me havia destruído integralmente o meu amado chapéu de chuva “dos cães”, em plena Alverca, deixando-me completamente desabrigada, como se não bastasse, ao chegar a casa, na urgência de salvar bens expostos no terraço e na varanda, deitei mão dele. Haveria de me abrigar da intempérie, por Deus. Fiz-me à chuva. Num segundo, dei-me conta do erro da minha escolha -  o meu “velho Loevenich” que tinha atravessado comigo o Atlântico voou como uma ave afoita para fora dos meus olhares …  No meio da chuva e do vento não houve mais vislumbre do dito. Praguejei raios e coriscos, blasfémias e outros tantos impropósitos dignos de uma senhora. Muito menos de uma senhora que usava chapéus …
Recolhida a casa, matutei nas perdas do dia. A tal frase, “palerma, chapéus há muitos”, não me saía da cabeça. Essa e a outra “quem o seu não cuida, o vento e leva”. Bom, naquele dia, dois dos meus chapéus tinham partido para o Reino dos Chapéus Perdidos…
Como tudo na vida, vamos arrumando lá mais atrás os incidentes que nos assolam a pele, na certeza de que “O passado é um buraco negro, a que, se te abeiras demasiado, corres o risco de ser engolida…”.
Tempos depois, alguém a quem havia contado a história, presenteou-me com um novo chapéu de chuva, desta vez de gatos… Um gesto maior, generoso e inesperado que dulcificou a perda de outro e uniu pontas de uma outra história. Há gestos que nos marcam…
Mas o meu velho Loevenich não foi substituído. No bengaleiro permanecia vazio o seu lugar.
Passaram cinco meses sobre a Tempestade Elsa. Esta semana, uma trovoada incomensurável abateu-se sobre a casa, as árvores, as terras, lavando e varrendo tudo ao redor. No dia seguinte o sol brilhou desmedido. Havia que proceder  à recolha das nêsperas, não fora uma nova trovoada dar cabo do ouro que a natureza me oferecia de bandeja,  e  eis que, se não quando, como que a dizer “estive sempre aqui, não te abandonei, tonta,  e vou continuar a proteger-te nesta tempestade maior”, lá estava ele, o meu Loevenich. Incrivelmente, não tinha manchas notáveis ou marcas de destruição. Uma sujidade ligeira perfeitamente removível numa lavagem a 60º. Cinco meses aninhado na copa das árvores a ver mais alto a vida. E a sábia metáfora do meu professor de Sociologia, o saudoso Prof. Doutor Bettencourt da Câmara: “Amélia, nunca se esqueça, o anão às costas do gigante, vê mais alto…”. Exacto, Senhor Professor, o meu chapéu entendeu às costas da nespereira, a amplitude dos tempos e a necessidade do regresso. Entendeu a utilidade do gesto.
Hoje voltou ao seu lugar: a minha cabeça. 
Pois… “chapéus há muitos”. Mas este conhece de cor as raízes do meu pensamento. Estou daqui a ouvi-lo “palerma, chapéus há muitos…sorri!”

MC, 2020- [©all rights reserved]


sexta-feira, 1 de junho de 2018

Na mão gigante do vento: Nazaret e o Caçador de Gergelins.

Castelo de Almourol by Enio Godoy Photography

Enquanto escovava os cabelos, Zaira revisitava  todas as pontes da sua memória.  A cabeça tombada na posição inversa ao corpo permitia-lhe o afago da nuca à correnteza das cerdas. Depois, amparando a cabeleira  com a mão direita, pela face inversa, percorria todo o caminho fulgurado desta, da raiz até às pontas. Por fim, após várias e repetidas passagens, devolvia o cabelo à posição inicial, sacudindo-o fortemente, não sem antes o acariciar, lânguida, ungindo-o num óleo miraculoso que lhe impedia o ressequido, o espigado. O cabelo era,  porventura,  o que mais cuidada em si e  um  precioso bem de que, em tempo algum se separaria. Tal como o dela: o carrapito preso com os ganchos de tartaruga, já baços, propalava  em formato de casca de caracol, da espessura maior, interior, à menor, exterior, soberbo. A ponta, a existir ocultava-a por debaixo da primeira, num entrançado certo, cuidado, dando mais vigor ao tom branco que a noite se incumbia de cinzelar. Ali na intimidade das falas retirava o lenço da sua viuvez, que a rua e os demais não haveriam, até ao dia do juízo final, de lhe ver o tom.  Ou o formato. O pudor acima de tudo, Zaira. O pudor! Dizia-se pertença de um só homem -  por ele se fizera mulher e para lhe agradar dera ao cabelo a forma das ondas do seu mar. Nesse mar navegaram dias a fio, extremosos, ele e ela tomados num ziguezaguear de músculos, de olhos, de vidas. Ele e ela. Por vezes quedavam-se exaustos em fragilidades próprias e nas complexidades das coisas simples: ora a chuva a cair impiedosa dos beirais da casa contra as lajes da porta, num chapinhado de patos bravios, ora o canto do vento descomprometido e livre nos canaviais das cercas dos terrenos. …  

Cruzou o umbral. Na outra margem do tempo em recta final, Egnácia trouxe-a de volta ao presente. Passou-lhe a escova nos cabelos escassos, conduziu-a para a sala onde tantos outros se avolumavam em risos ocasionais quando eram tomados do que imaginava serem sonhos nostálgicos. Apegavam-se às rotinas diárias em dissimulação de afectos como que negando cuidados terceiros, mas lá no fundo, bem no fundo, eram as rotinas que davam tempo ao tempo. Tinham deixado de Ser. – Quando se deixa de ser quem se é e não se consegue ser ou conviver com a alternativa, o tempo perde a sua notável agilidade evolutiva, dissera-lhe Egnácia certa vez. Ficara perturbada. E ela, Zaira, quem era? Ou quem deixara de ser? Em que umbral do tempo deixara dependurada a pele ou em que silvas se rompera o casulo antes da metamorfose das asas? Olhou-a de novo. Os olhos baços como que a pedir pouco, quase nada. Como que a pedir desculpa porque sim, por ser um fardo…

Naquela manhã os pássaros estavam silenciosos no seu piar. Em demasia. Zaira retomou o fio da meada dos dias. Ali estava a cuidar das avós dos outros, a buscar colo que lhe amenizasse a dor da perda. Cuidadosamente, escovava-lhe os cabelos ralos e finos. A custo tentava que se acomodassem aos ganchos que, obstinados, escorregavam cabeça abaixo. – Ora bem, findámos. Está linda, concorda? Abanou a cabeça em aprovação. - Obrigada.E, sem aviso: – Liso, era liso o meu cabelo, menina, tão liso como as lezírias prateadas  de  trigo a chorar à fala da  foice. Difícil de prender, de se acomodar aos ganchos, à rede. Tanto que o ceifei para o vender aos ciganos, que, de castigo, a terra fecundou-me os pés, e, às tantas,  eu e o cereal que crescia nas várzeas éramos uma seara só. Se foi o trigo que me viu ser mulher aos braços da maré grande, se foi ali, além, nas searas que pari os meus filhos, se foi o rio que me lavou as mãos, depois. Um sorriso alvo brilhou-lhe o olhar, algo diabólico. Não havia arrependimento nem mágoa. A boca enrugada revelava duas fileiras de dentes certos de fazer invejar a muitos jovens. A ela própria. Zaira não resistiu, elogiou - Que belo o seu sorriso, os seus dentes são maravilhosos, Dª. Nazaret, são verdadeiras torres marfiniticas de um castelo altaneiro...
Cortou-lhe a palavra:  Almourol!- Conheço tão bem, mas tão bem, que nem a menina imagina. Sou da Barquinha, da sede do concelho, - a vila mais bonita de que há lembrança, ou melhor, era. Agora não sou de lugar nenhum e nem a minha vida pertence a ninguém mais. Nem a filhos, a marido ou amado, muito menos a meus falecidos pais. Estão todos mortos! Os que sim, que Deus os guarde e por eles rezei e peregrinei anos a fio, quando já não tinha nem cama, nem casa, nem eira nem beira. Por eles, mortos, acendi memórias e velas de aleluia em todas as igrejas e capelas da região, da Senhora dos Remédios à Matriz de Atalaia. Na capela de Roque Amador, ou a do Senhor Jesus, quando Deus queria e me guiava ai, lá estava eu curvada em sua glória. E noutros dias, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Igreja Matriz de Vila Nova da Barquinha. … acho que não me esqueço de nenhuma, menina; Bem vê, em todas lhe acendi agradeci e entreguei a minha alma na mão gigante do Infinito. E os que não, os vivos ainda, que os matei nos meus olhos quando se esqueceram do meu nome, nome de lugar sagrado; fui-os matando aos poucos quando, na arrogância e desvario dos obstinados ou pobres de valores e de espírito, se apoderaram das casas, lugares de criação, quase em ruínas, e dos terrados, lugares de vinho, azeite e pão, e dos linhos da arca que me estavam reservados para a mortalha, dos barros da greda, das talhas de azeite e da minha trança. Dizendo isto, Nazaret, turvou perigosamente o semblante, agora prenúncio de trovoada. Na sala, em surdina, crescia um canto penumbroso equiparado ao rastejar de cobras. Incomodativo. Os olhos apequenavam-se afiando-se em lâmina contras as têmporas, a boca perdia espessura descaída em arco, o queixo trémulo, os ombros hirtos. Da minha trança, repetia. Vendia-a bastas vezes para lhes alimentar a boca mas não imaginei nunca que um dia seriam eles a vendê-la para se arruinaram à mercê do vício. Vinho e drogas. Depois de África (diziam-me que negociava em corno de rinoceronte, em presas de elefante). Foi para lá fazer a tropa e, quando voltou, dele não restava nada se não o nome: Inácio. E o vício. Os vícios. Logo ele que dizia “o vício não pode ser maior que o homem”. Dizia-se negociante. Dizia-o à boca cheia, afugentava os pedintes “façam-se à vida, cambada, o que mais não falta é trabalho”… 
Vi-o a última vez, antes daquela em que o matei dentro de mim, o meu mais velho, nas margens do Tejo, nas Festas do Rio e das Aldeias, num 15 de Agosto. Os festejos espalhados pelas duas margens. A procissão fluvial já a chegar a Tancos. Os barcos engalanados. Vi-o e antes não o tivesse visto. Vinha tomado da ira, aprochou-se a mim, varreu-me a carteira, estava vazia, tinha comprado um pão, umas migalhas tremoço, um gergelim; lançou-me um fedor de vinho e a sentença: - amanhã volto e alguma coisa haverá de ter para me dar. Se não a trança! Ou os dentes, que os têm bem bons ainda – hão-de valer dinheiro… E voltou, nunca foi homem de renegar uma promessa, lá nisso saiu-me a mim. Voltou acompanhado com quem o desviou do caminho. A tesoura da poda a que nunca se afeiçoou ainda estava dependurada na adega. Foi com ela que levou o orgulho de uma vida – foi o orgulho que me levou, menina Zaira… coloquei um lenço, enviuvada de novo de uma viuvez de parto. E nova sentença: - A seguir, arranco-lhe os dentes. Corri à adega, apoderei-me da roçadora … não me lembro de mais nada. Os mais novos, dois, rapaz e rapariga, esses, dizem-nos na Europa, eu não sei o que é a Europa, o mais longe que fui foi ao Arripiado, do outro lado do rio, mas sei que deve ser um lugar de esquecimento onde há quem perca a memória e a vontade de regresso. O chão tinha a cor das alcachofras e da beterraba. Não percebi. Tomei-me de dois baldes e esfreguei até não ter mais pulsos. Coloquei um lenço. Na margem do rio pedi ao barqueiro que me levasse ao castelo, pedi a troco de um punhado de tremoço, riu-se de mim, mas levou-me, abençoado homem, e, pergunte-me agora menina, que lhe vejo a pergunta a bailar nos olhos, em que dia e em que data, cheguei aqui. Pergunte. Não sei, só sei que o cabelo me chegava à curva das pernas e que os meus dentes estavam brancos, disse o Doutor, de tantos anos a comer raízes… nunca mais voltei à Barca – era assim que se chamava a minha terra antes de tudo isto, quando eu era princesa, mais tarde Rainha do meu homem,  e habitava o castelo. Quer que lhe fale dele? Do castelo? Conheço-o como ninguém.

Nazaret perdera-se de novo. Como em tantas manhãs ir-me-ia falar da Ordem de Cristo, da Reconquista, da arquitectura militar, do Beijo do Vampiro. E dele, o Caçador de Gergelins. Nada e crescida nas Lezírias, pouco mais do que alfabetizada, de onde lhe viera tanto conhecimento? 

Encontrara-a quando, a pretexto de fotografar o castelo na lua cheia, pernoitara desautorizado por lá. Do afloramento granítico secular surgira sem aviso por uma brecha imprevista qual figura do Neandertal. Apavorado, duvidou que fosse gente. Dela só o alvor dos dentes. Estendeu-lhe uma mão cheia de tremoços e um gergelim e o pedido: leve-me de volta à vida. 

terça-feira, 22 de maio de 2018

Laura, ou as bruxas não usam óculos

Só ela conhecia, a palmos bem medidos de mãos pequenas e unhas sobressaídas, vermelhas como cabeças de fósforo, a escureza daqueles lugares de memória. 
Só ela, no formigar dos dedos, tacteava percursos impossíveis que os pés, calçados com sabrinas rasas, bordeaux, cravejadas de brilhantes, teimosamente, a descontento do ritmo cardíaco arrítmico, ora em taquicardia ora em bradicardia, leigos, ledos e lépidos, resistiam no trilhar. 
Cada dia era uma vitória intrínseca a um ponto final vaticinado lá mais atrás. Mas disso, desse estado energúmeno, Laura negava-se a falar. Nem que a ameaçassem de lhe arrancar a língua. Nem que a suspendessem presa pelos pés. Nem que …. Daria a volta, faria o pino, voltaria ao ventre da mãe, à posição fetal, seria embrião de mulher mal parida, mas não falaria, Abracadabra. Não falaria, bruxas à parte e porque há coisas de que nunca se devia falar para não acordar os espíritos do inverno da vida. Apenas dos resquícios.

Arritmia sinusal, dissera-lhe o médico. Comum quanto baste em crianças, mas que a atingira como um raio fulminante no meio de uma trovoada, na idade adulta. Desde então, a braços com uma sintomatologia incomodativa que lhe oscilava o peito cima-abaixo num arfar de cão em esforço, em anómala frequência cardíaca durante a respiração, ora em aceleração dos batimentos ao inspirar, ora em diminuição ao expirar, passara a relativizar o que, fora de si, daquele corpo agora estranho para si própria, ocorria. A vida interna já lhe era povoada de uma inconstância q.b. que lhe porejava os sentidos em ancoradouros vazios. Os dias, como a maleita que a afectava, oscilavam entre descuidosos e despreocupados, ou desolados e infelizes. Nos primeiros, Laura, fosse qual fosse o problema que surgisse, chutava para canto, desvalorizava, antecipava-o, engendrava solução. E era boa, muito boa nisso. Nos segundos, a mínima contrariedade tomava –lhe em espírito, espaço sideral. Assim era Laura naquela Primavera de 2018. Apegada e despegada, exuberante ou amorfa… Inóspita, quase impenetrável, não raras vezes, não buscava nem fazia amigos. Porque sim. 

Foi num dos dias primeiros que os perdeu de vista. Buscou-os, inconvicta, por toda a casa, por todas as casas onde a memória dos dias anteriores a colocavam. A casa da praia, a casa da cunhada, da sogra, os espaços exteriores de todas, quintais, garagens, e por ai adiante. Nos lugares mais improváveis. No frigorífico, na sapateira, nos armários dos tachos – a minha cabeça já não é o que era, estão postos por mão - , dizia a si mesma. Hão-de dar cor de si … Mas deles, nem sombra. E eles a não lhe fazerem sombra aos olhos como deviam, como era a sua obrigação, e ela a serrar os olhos, quase míope, ao sol baixo e traiçoeiro. Abracadabra, porra, haveriam de aparecer e, por conseguinte, fiel ao conforto que lhe haviam proporcionado até ai, fidelíssima ao seu ar clássico e atemporal não se predispôs a substituí-los. Acreditava na máxima “Eu crio ao falar" e, derivado a isso, mentalmente, apelava ao seu regresso invocando tempos em que eles e ela foram peças do mesmo puzzle. E que belos momentos aqueles partilhados, eles a filtrarem o excesso ela a buscar o dito… 

Nos dias seguintes, claros e nublados, com a temperatura baixa, quase que os esqueceu. Achou-se livre de todos dos perigos. Mas, lá bem no fundo, havia sempre uma falta, um pedaço de si esquecido num campo de papoilas a resgatar. Como um ente querido deixado infantário, num lar de idosos, num hospital… Os dias sucederam-se aos dias como previsível. Numa tarde em que o sol abriu irrefreado sentiu-o e sentiu-se como “tinta que caía no móvel vazio congregando farpas”1. Dorida de ausência. Por fim, infiel à memória, deu por si, frente a um espelho a ensaiar uns e outros. Nenhum a satisfazia em pleno, demasiado grandes, demasiado pequenos, demasiado modernos, demasiados retros. Acabou, esgotada em delongas, por adquirir uns, um tudo-nada semelhantes aos desaparecidos em combate, mais audazes, mais leves. Abacadabra, Eureka, disse. Pagou-os e à saída da loja, inculcou caminho. Rua a cima, rua a baixo, “Nos degraus de Laura, No quarto das danças2, menos nua, menos exposta, ensaiava posses de artista de enésima categoria. As selfies faziam o resto – recriavam memórias futuras. Eureka.

Já quase-quase os tinha esquecido. Que se lixe, merda de óculos. Naquela manhã nebulada de Maio, pegou no telemóvel e nos “substitutos”, pegou na bolsa, na lancheira com o almoço, desceu as escadas, abriu o carro e, como todos os dias colocou ambos os volumes no banco traseiro. Conduziu a franzir sobrolho – estes óculos são uma merda, logo tive de perder os outros… Ok. São só uns óculos. Quinze minutos depois, abriu o pisca para a esquerda, estacionou, abriu a porta traseira do lado esquerdo a fim de retirar os pertences. Recurvou-se dentro do carro e eis que se não quando, os miseráveis, os desgraçados, os filhos da puta, a fitaram em gozo puro, como que “postos por mão” sobre umas botas invernosas ensacadas à espera de ir para o sapateiro. Há meses! No meio do chorrilho de desaforos com que lhes deu as boas vindas a casa, deu por si e pensar que se as Fadas não vão à escola3 as Bruxas não usam óculos em dias de neblina. Ou talvez usem?

Lentamente, no horizonte, as nuvens começaram-se a espalhar para os lados, em camadas finas…

...

 Citações:

1 e 2) Redondo Vocábulo, Zeca Afonso

3) As fadas Não Foram à Escola, Maria Augusta Seabra Diniz




quinta-feira, 26 de abril de 2018

Ceifados


Todos nós temos um jardim. Um jardim só nosso onde deixamos cultivadas as nossas memórias, as nossas correrias de meninos, os nossos beijos de namorados. E ai de quem diga que não o têm, que lhe direi de seguida que não viveu ou está desmemoriado. Não sou excepção. O meu era uma espécie de pátio com quatro ou cinco vasos de barro, uns baldes de zinco furados à força de tirar água do poço, e outros tantos tachos sem asa e esburacados que, impróprios para o fim para o qual haviam sido concebidos, se dispunham lado a lado com os primeiros e acolhiam as podas e os bolbos de uma e outra flor roubada (para dar sorte) de uma qualquer vizinha. E uma cadeira com uma perna partida, encostada à parede. E rosas. Ai as rosas. Havia rosas, rosas, rosas…

Em multiplicação o jardim luxuriava em tons de veludo e texturas de seda, dando ares de fidalguia ao simplório lugar. Pouco mais havia de ter que uma vintena de metros para cada lado, medidos pelo compasso das minhas pernas abertas ao máximo, paredes de cal lavadiça e chão de cimento afagado, gasto, puído pela passagem, coberto com telhas de zinco a evitar as pingueiras. E ventanias. Outros talvez lhe chamassem corredor mas, para mim, do alto dos meus poucos anos era O Jardim. Ai de quem o negasse. A porta, essa, de um verde desbotado onde a madeira à vista registava vestígios de caruncho.

Com um postigo sempre aberto a avistar o espaço do horizonte, a casa de família, de serventia única, não sabia de outras portas, e, por conseguinte, por ali entravam todos quantos a habitavam e os que, aos domingos e dias santos nos visitavam. Lá de dentro cheirava sempre a pão e a cravinho da índia. Os alguidares de barro cobertos de panos brancos escondiam manjares dos deuses: a broa da semana inteira, a carne a temperar para os enchidos que haveriam de dar unto ao tacho e conduto ao prato.

 Na passagem, as podas agarravam-se às saias e, Vizinha, tem aqui um belo jardim. Dª Catarina vou roubar-lhe um tranquinho desta que luz, benza-a Deus.  E zás. Já estava…

Na serventia, passavam os passos, as pessoas. E as boas e as más notícias.

Como naquele dia, o dia em que o jardim sem aviso prévio começou a definhar. Era dia das mentiras e ninguém acreditou possível a partida do avô ceifado por um tractor. “homessa, homessa…”

E a definhar se fizeram frios os olhos cor de cinza da avó Catarina (antes azul de mar), ela agora um tacho sem testo, um caco sem asa. Depois foi a vez do tio Zeferino ceifado pela pneumónica e logo de seguida o outro tio, Fradique de seu nome, ceifado pela guerra de África - “homessa, homessa…, quando é que parará esta matança?”

Sem respostas, os olhos cinza da avó Catarina cada dia mais frios, incapazes de chorar uma lágrima. Depois de seguida, a tia mais nova, Catalina, moçoila madura mas de fino porte, esperança de continuidade da família, além de mim, deixada por alguém, "filha duma gata mal parida, que se fez ao meu homem" nas palavras da avó… Ela, sim, jóia da casa,  ceifada por um amor sem tino que a levou ao cadafalso das mulheres perdidas. “homessa, homessa… onde já se viu semelhante coisa. Um homem casado, com idade para ser seu filho. Mais novos quase vinte anos! Eram só dez, mas isso que importa? ”

e a voz da avó “para mim está morta”.

No dia em que do jardim apenas restavam os vasos, os baldes e os tachos cheios de terra empedernida pela falta de água, percebi que, de outrora, do meu jardim,  nada sobrava. Foi também nesse dia que a foice se fez farta na barriga da avó e eu deixei de acreditar em histórias com final feliz. 

 

Imagem da net

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Ancestralidades


não se anda sobre a terra como se ela não tivesse história e outros pés antes de nós não a tivessem calcorreado. não se anda. ou pelo menos eu não ando. foram os elementos da sua composição primitiva, acanhados, soltos ou grosseiros, que lhe afectaram o comportamento e o progresso das estirpes. foram.  e o dos povoados, e, por conseguinte, a forma como a habitámos. ou nos habitam.
cada grão de areia, cada pedra, cada musgo, cada milímetro de chão inóspito e exposto ao desaconchego das raízes, conta a história destes - uma história de abandonos. às páginas tantas de um qualquer dia, alguém se foi, partiu e não olhou mais para trás. ou porque a morte lhe trocou as voltas ou porque o apelo de outra vida, melhor, maior ou mais cheia, se sobrepôs à vontade de ficar. depois, a manchar a paisagem, ficaram as ruínas, os escombros, as árvores sem podas, mal esgueiradas e bravias, os bravo de esmolfe de que tanto gostavas, ressequidos, o tanque da rega talhado numa só pedra a poder de braços, revestido a verdete pastoso, os frutos persistentes que, ainda assim, a destrato,  vão nascendo e caindo podres para que a semente brote de novo. e os silvados a recobrir lugares de afectos. e a degradação a dar conta de telhados, coberturas, alicerces. todo um espólio de recursos ou riquezas, um património irrecuperável a desarticular-se aos poucos. ou subitamente. depois um vazio. um espaço em  branco em que tudo pode ser de novo. uma casa térrea, um arranha-céus, uma família, um texto sobre a folha em branco, um livro comum, um best-seller.


afasto o moutedo o mais possível em busca de um palmo de terra livre para firmar os pés ciente de que, uma vez caída, é e será sempre, com a ajuda do chão que me levanto. 
um raio de sol trespassa a neblina fria da manhã. aponta para um ângulo indefinido onde uma árvore se desenvolveu em contraponto ao descampado do lugar. solitária. uma semente a jorrar do ventre da terra. a tal semente. sobre os pés, uma voz de silvas eleva-se a retalhar o silêncio. zumbe em círculos, anéis à volta das ancas a travar o passo. anéis de silêncio ao redor de um umbigo. se se pudessem contar num método científico similar à dendrocronologia haver-se-ia de determinar que a minha idade real é de mais de mil anos e alguns deles bem espessos, quase opacos – sabido é que as árvores crescem mais no período de chuvas e nas épocas mais quentes e que de zonas “mornas” não se fez o meu viver. tudo foi sempre oito ou oitenta. a minha história, a minha vida, têm camadas de silêncio.
afasto-o uma e outra vez. as mãos desprotegidas retalham-se na imprudência do gesto. ainda assim, indiferente à dor, persisto. persisto em busca de um não sei quê, de um não sei quanto, da ancestralidade transmitida de geração em geração, soma de todas as vidas vividas a conjugar o verbo na sua forma mais imperfeita – é ai que resido. no pó da memória de que se alimentam as raízes. e nos laços de sangue. 

(imagem da net)

segunda-feira, 9 de abril de 2018

O sono dos outros



Pintura Edvard Grieg, "Separation", 1896, Museu Munch em Oslo.

Se é para fazer, que seja bem feito; se é para ser que seja inteiro; se é para amar que seja amor (o amor é o meu objectivo, ou melhor dizendo, O objectivo maior). Concordas? …

Não me respondes, aliás e de um modo geral não respondes nunca, esse é o teu modus operandi: refugias-te na caverna do silêncio.

Continuo: … é tão difícil saber o que é o certo ou o errado, mas, se escolhes errar ou erras porque escolheste errado, então assume o erro, errando com muita classe. Oiço-me e pergunto-me: pode haver classe no erro? Creio que sim, em tudo pode haver classe, elevação, postura, atitude, até no erro ou na assunção do erro. Prossigo, em monólogo,

… a vida, segundo o meu prisma óptico, é para ser devorada à boca cheia, sorvida de forma desabrida,  ou para ser saboreada na lentidão das coisas prazerosas, e não o seu contrário, na mediania dos medíocres. E, se me perguntas, dir-te-ei que então: - estou convicta de que não faz sentido insistir, insistir até aos limites, no que não tem sinal positivo, no que não te acrescenta. E, como disse alguém, se já não é sentido, não tem sentido. A tua caminhada (é dela que falamos hoje, neste dia chuvoso de mais um Abril, não um Abril qualquer, mas neste em particular e para o qual, videntes ou iluminados, vaticinaram próxima mudança do campo electromagnético do planeta e o dia do juízo final), gerou em ti uma ideia de invencibilidade, uma ideia de posse e o poder cegou-te. E, em rigor dos rigores, as coisas são só “coisas”, e todos nós, eu ou tu incluídos, temos muitas e demais. Não só de pão vivemos, não só de prazeres mundanos, da crueza da carne… Assim era em Roma, “pão e circo”, mas desde lá até então, evoluímos, certo? Somos muito mais energia do que matéria, vamos além do corpo, do ego e até do intelecto. Somos alma. E quanto ao poder, de que te vale agora? Nesta viagem nos tempos modernos em que temos, do ponto de vista material, tudo, e a vida muito facilitada, impõe-se reflectir profundamente sobre o seu sentido, sobre a mensagem que nos trouxe aqui. Sobre o amor, portanto. Impõe-se um olhar sobre outras realidades, o tal olhar de fora, atravessando a nossa crosta, a nossa pele, se é lá, debaixo da pele que existimos … Fácil? Não, não é, mas impõe-se! – a nossa caminhada aqui, no planeta azul,  é o que fazemos com ela.

Gostas de futebol, bem sei. Então falemos dele. Compras um bilhete, escolhes o lugar e vês de onde queres ver. É-te sempre reservado o livre arbítrio, não obstante possas pôr isso em dúvida e pensar o contrário; é-te permitida a escolha do lugar e do tempo em que, da bancada, assistes ao jogo:  esse é o teu lugar. No limite poderias não ter escolhido comprar o bilhete se os lugares disponíveis não te agradavam. Mas compraste. Sentado na bancada, dás-te conta de que foi uma má escolha, e, ainda assim, é-te permitido, continuar sentado e deixar que o jogo se desenvolva à tua frente sem que, porque o lugar que escolheste não te permite ver na totalidade, possas opinar sobre uma série de lances, jogadas, jogadores: a tua visão é segmentada, condicionada a escolhas erradas e condicionada também à tua imobilidade. Entregas aos outros a criação de condições capazes de validar a tua decisão de permanecer ali – que se removam os pilares que te cortam o ângulo de visão, que se mudem os assentos incómodos, que o treinador disponha os jogadores de forma diferente dentro das quatro linhas, que se mudem as cores dos equipamentos, o relvado, enfim, que se faça qualquer coisa, mas faça: tu compraste o lugar. Pagaste e tens direitos. Pensas, esta é a minha oportunidade e não posso rasgar o bilhete, e, agarrado que estás a um sentimento de posse, nem sequer equacionas tentar trocar de lugar e ter outro ângulo de visão, outro ponto de vista. Ainda que nessa troca saias a perder, a escolha venha a manifestar-se de novo errada. Mas tu tentaste, procuraste novas abordagens ao problema, permitiste que se instalasse em ti a convicção de que fizeste a tua parte e uma vez feita a entregaste – o que vem depois não é tarefa tua. Ou nossa.
Nossa é, deverá ser, a preocupação com o sono dos outros …

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Glaciar




Na deriva dos dias emerge o cume de um tempo
De_ gelo. Um glaciar sem nome sustido na corrente sanguínea, a atropelar cada nanossegundo de um chão lunar em que, de pó de nadas, se faz o espelho em que aposto a cara. Retalhada, a imagem de mim não mais é do que a de um corpo chamado palavra e nele, no corpo que entrego rendida aos signos, cada letra luta agora por um novo posicionamento. Como um puzzle de que se perdeu a identidade ou que perdeu a lembrança original de si, e onde as peças, atulhadas por prazos infindos em caves escuras e expostas ao salobre e ao bafio, se esfarelaram per si em redemoinho de vísceras frias e poses deíficas, numa tentativa vã de danças acrónicas. Como um astro que aparece em lugar oposto ao Sol. 

Nada subjaz à mandíbula impoluta do gelo. O corte entre o antes e o agora atravessa as crostas mais íntimas e espessas, retalha-as sem dó nem piedade e a literatura em estado puro do que foi um dia o livro de Génesis deposto em tuas mãos, nega-se a regressar à claridade. A subida de tom das falas perdidas em silêncios calculistas afectou o equilíbrio das pedras de que se fizeram as paredes de gelo e nem a nova água que chega de todas as chuvas tem capacidade de ser absorvida - apenas e só gera, no mar das nossas vidas, a subida das marés. 


imagem da net.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...