Sobre mim ...

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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 24 de março de 2010

"Epístola quase lírica à poeta Mel de Carvalho", palavras de outros...


Poderia, amiga, falar-te das manhãs que não cheguei a ver. Porque o ar me faltava e o suicídio seria imediato. Um pouco de formicida. Mas tento falar da revolução cubana, enquanto o comandante ainda respira. Queria cantar-te os poetas do meu país. Mas as viagens por eles me sumiram do mapa. Tenho um olhar de quem não tem nada. E desde muito cedo os olhos muito tristes. Um dia, ainda no ginásio ouvi de um professor: "Deu pra ser poeta, não pode ser boa coisa." Aos 12 anos, gazeteando aula, vi meu avô morrer debaixo de um caminhão. Foi o meu primeiro contato com a morte. Viriam outras depois. O jornalismo, a literatura, prêmios que nunca sonhei receber. Veio um beijo na boca. E aprendi que a poesia é bem maior que qualquer metralhadora. Vem de longe, de muito longe, o meu gosto pelo álcool. E pelas pombas que agora vejo passar em frente onde moro. Todo fato é um fado, escrevi certa vez. A barba deixa meu rosto mais velho. Tenho a mulher que amo. E a poesia para escrever. Gostaria de aprender violino. Não tenho jeito pra música. Eu queria imenso ser como uma dessas pombas que voam na praça perto de onde moro.

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júlio, itinerário, inédito

Júlio Saraiva

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Porque de quando em vez nos sabe bem acreditar que as nossas palavras fazem sentido …
Porque estou a preparar um trabalho para alunos sobre as minhas (modestas) palavras poéticas... e, acima de tudo, porque sempre acreditei que as coisas, ao caso, os estímulos, nos chegam quando é tempo de chegarem, hoje, pesquisando, reencontrei estas.

Partilho e agradeço-lhe, Júlio Saraiva,  generoso prefaciador do meu 2º Livro.

terça-feira, 16 de março de 2010

3º Encontro de Poetas do Concelho de V.F. de Xira

3º Encontro de Poetas do Concelho de V.F. de Xira 
 dia
20 de Março, às 15.30h  

3º Encontro de Poetas do Concelho de Vila Franca de Xira, apresentação e leitura de poesia dos seguintes autores: Cristina Moita, Mel de Carvalho, Sara Rodrigues. Com a colaboração dos grupos de poetas da Póvoa e Gente Viva de Vila Franca de Xira. O Encontro terminará com a actuação do Grupo Coral “Ares Novos”.

Biblioteca Municipal de Quinta da Piedade.
Toda a informação aqui 
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Não me considerando poeta, mas tão-só, mera amante das letras (da poesia aos contos às crónicas...), não posso, na oportunidade,  deixar de agradecer aqui, publicamente,  o gentil convite da Câmara de Vila Franca de Xira e, deste modo, informal e directo,  convidar-vos a cada um, meus leitores e amigos, para nos acompanharem neste evento comemorativo do Dia Mundial da Poesia.
Pela língua portuguesa, pela poesia... 

Grata, Mel
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quarta-feira, 10 de março de 2010

Três vezes Maria.


Corria de boca em boca como o vento em dia de temporal. E a todas abria num
Ahhhh,
de espanto.
Não acredito, podes acreditar, a Maria da Anunciação, a mulher do Frederico Navalha matou-se, pôs fim à vida com seiscentos e cinco forte
Aquele que se usa nas colheitas? Aquele com que se engodam os ratos?
Esse
Valha-nos Deus, o mundo está perdido. Com uma vida tão bonita, de casa posta de tudo quanto é bom, do melhor, bem arreada de ouros e de unhas feitas, aquilo bem se via que não era menina de andar aos campos…
ou educar filhos ...
E os filhos, se bem me lembras? ...A mulher lá pensou nos filhos? Pensou foi nela, a magana,
Os filhos, bem se vê, hão-de ficar com o pai, o pior é o mais velho que não tem os cinco alqueires bem medidos e que se pega com todos,
Dizem que o pai o renega, que nem se acredita que é filho dele…
Hom’essa, é a cara do Frederico sem tirar nem pôr, ou melhor dizendo, da raça do Frederico, de que há aqui na aldeia memória: sisudos, secos por fora e por dentro, olhar sempre mais além que as Lezírias, lá onde os mouros se achegaram da costa, em desconfiança, à família da Maria Anunciação é que ele não pendeu, gente tão alegre e afagadeira, e ela? Tu te alembras? Quando enchia o recinto da dança da sua graça? Era uma mulher e pêras…
Entre dentes …
ainda é…
E isso que importa agora? Está morta, matou-se e se deixou porquê, ninguém sabe, que o corpo quem no encontrou foi a Maria Benta que lá faz a lidação. Estava no pátio, no meio dos lixos que a ventania atiçou como cães contra ela, folhas de figueira, de nespereira, de oliveira (até na boca as tinha, homem…) estava encurvada entre a corte dos porcos e o galinheiro… A Maria Benta até já tinha dito de conversa à minha Tomázia, a senhora não anda bem, para ela, que era tão opiniosa, que era de tantos porquês na lida, agora tanto se lhe dar, como não, tanto se importar que o vidro se embace como que brilhe, que a casa cheire a limpa como não cheire a nada;, alguma coisa se passa;  dantes queria cera posta por detrás dos móveis, imagina ó Tomázia, se isso tinha sentido, cera daquela antiga, posta de quinze em quinze dias, móveis desarrimados e tudo limpo e encerado, dos rodapés até às calhas das varandas. Dizia que, por serem de estilo moderno, não se podiam encerar os móveis pela frente, mas que não prescindia do cheiro a limpo do antigamente. E os vidros, Tomázia? Obrigava-me a lavá-los mesmo quando chovia, dizia que se fossemos a pensar nisso, nunca se fazia nada, porque tudo se haveria de sujar…
E os lençóis ó comadre Tomázia? Tu julgas que mos deixava passar assim entrementes como nós fazemos para nosso governo? Uma passadela de “dá-lhe uma e promete-lhe outra?”, não, até se arriçava toda,
Maria Benta, as coisas fazem-se a preceito. Uma tolha turca por baixo e as rendas engomadas do avesso, e os bordados, a mesma coisa,
as toalhas de mesa então, quando vinha alguém de fora para jantar (coisa rara que o senhor Navalha é pouco dado a sociais), obrigava-me a botar-lhe clara de ovo como se fazia antigamente para os toucados das enfermeiras … em tudo era assim, até um dia, que nem me alembro bem aquando, não se levantou da cama e não me deu ordens, nem de que fazer de almoço, nem janta, mas acho, pensando bem, que tinha ido com o filho à psicóloga no dia anterior, ou lá que é isso, disse-mo o caseiro, que a viu a chorar, que o Sr. Frederico quando ela chegou com o menino Valério a tratou de vergonhas, que até disse que, se o miúdo era atrasado, a culpa era dela, que o amaricava que não fazia dele um homem e o metia debaixo das saias, força de expressão bem se vê, e que do mais novo ele se encarregaria de o fazer homem e, noite feita, o montou no tractor e o levou para o campo e a criança nem foi à escola na manhã seguinte, desde esse dia, ó Tomázia, a minha senhora deixou de reluzir a casa, deixou de se interessar pela cera das abelhas e até pelos bordados e, olha, para falar verdade, desleixei-me um bocado …, ela parecia que não via ninguém, passava os dias sem dar salvação, e nos dias que o menino se passava dos miolinhos e fazia aquelas travessuras então assombrava-se fantasmada como o veludo negro aquela casa,

mas esta agora, deixou-me aparvalhada, por esta não esperava, atão desistiu dos meninos? … e etc…, disse-me a minha Tomázia quando os sinos tocaram a rebate, recordando-me a conversa que...

já não sei por bem as falas de pé, compadre Ezequiel. Mas o que importa é que se matou com seiscentos e cinco forte, que deixou dois filhos, que não tinha razão nenhuma, ouviu bem, nenhuma, que não lhe faltava conforto nem meios, que ainda por cima era bem arrevesada, que era um bocadão de mulher, um vulcão a bem dizer, que punha a cabeça de todos à volta, e que, se matou na flor da idade, que o marido ...

... compadre, dizem que ele a comia, com perdão da palavra, como um animal, que ela gritava, que ela por vezes usava golas altas no verão…,
E depois? Não dizem que é moda? Camisolas de gola alta sem mangas? O que tem isso a ver com a história da morte? Ora não querem lá ver que um gajo não pode comer a mulher como lhe apetece?
… que a sufocava, que um dia até a comeu nas escadas, dobrou-a pela cinta e vestida e tudo, usou-se dela…, que dizia palavrões, que o filho, o atrasado, os viu e desde esse dia, andava sempre atrás da mãe, e que por isso é que se tornou naquele maricas que se sabe, sempre a apanhar flores para ela, sempre a dar-lhe abraços e ela a estragá-lo,
agora bem pode ir levar-lhas ao cemitério, que ninguém achará diferença, mas ó compadre Ezequiel, um miúdo andar de florinhas na mão, a fazer macacadas, de joelho no chão,
sou o teu príncipe, sou o teu pajem, mamã … e ela a rir, e não o mandar ser homem, dá no que dá… e olhe que o outro, apesar dos ensinamentos do pai, ia pelo mesmo caminho, esse era de viola em punho, a cantar para ela…
Menina estás à janela, com o teu cabelo ao vento
sou um trovador, que achas, mamã? Tenho futuro?…
E ela? Colocava-se mesmo à janela, diz a Maria Benta que dizia que estava a fazer teatro com as crianças … mariquices, bem se vê …
Agora matou-se, vá-se lá perceber, se afinal gostava dos filhos. Mentes fracas, mulheres que não têm juízo... O Frederico ‘tá um trapo, nem parece o mesmo homem, dizem que o viram a chorar e que tinha flores nas mãos, mas só pode ter sido porque lhas deram, que ele nunca as apanharia para a mulher, nem morta, é homem, não é desses…
antes quebrar que torcer, benzó Deus. Puta que a pariu, que amaricou os filhos,

Ó compadre, diga-me uma coisa, a Maria Benta nunca …
Chega, homem, a culpa é dela, que se matou e não pensou na honra do marido, todos a esticarem o dedo, nem nos catraios, e agora vossemecê insiste em que ele assim e mais assado? Que a comia, que a esquecia dias e dias sem uma palavra quando ia fazer as campanhas do tomate nos campos? Que, no tempo do melão levava os ranchos de mulheres e por lá se aviava? Ora, compadre, homem é homem, e bicho é bicho. Outra Maria se há-de anunciar, verá…
A culpa é dela... uma Maria vai com as outras, é o que é... uma pecadora...

... compadre, e a justiça Salomónica? quem ama renuncia, e, digo eu, talvez ela achasse que a culpa era mesmo dela e ...
Ora, ora, e vossemecê  a dar-lhe e a burra a fugir ...

***
Os sinais eram evidentes. Só tu não vias. Ou não querias ver. Era mais cómodo ignorar o que avançava íngreme na mente de teu filho. Os nossos filhos são sempre meninos. Preferencialmente perfeitos. Sem crises
sem parapeitos perigosos
sem atavios de mente
sem unhas negras

Os sinais eram evidentes. Não que tenha em cabeça que pintar unhas de negro, vestir de negro e viver fechado dentro do quarto seja sintomático de algo não está bem, mesmo quando tudo isto se passa aos quinze anos, mas Pedro, não seria hora de fazeres frente ao teu filho e teres com ele aquela conversa que se impunha?

O dinheiro não chega, Pedro. Sei que és um pai dedicado, que não lhe faltas com nada, que mal ele te pede seja o que for tu, sempre tão ocupado, tão assoberbado com trabalho, com reuniões até altas horas, com trabalhos infindáveis, atravessas a cidade de lés-a-lés, moves o céu e o inferno e dás-lhe o que ele quer. Eu não sou assim. Tens razão, somos diferentes Pedro, muito diferentes mesmo. Não lhe facilito a vida, não lhe faço as vontades todas, sou interrogativa, sou chata, questiono-o sobre o dia a dia, sobre o que fez e não fez, mesmo sabendo que as respostas são evasivas, que raramente ultrapassarão a meia dúzia de palavras, sei que o fosso se agudiza e que, a cada hora comunica menos, sei que os adolescentes passam crises, mas sei Pedro, que não desisto dele, que o amo (e nem duvido que o ames) mais que qualquer coisa neste mundo, Pedro, e que, se para o despertar para a vida, para o acordar para o sol que nasce em cada madrugada for necessário ser violenta, serei. É anti-pedagógico? Com vinagre não se apanham moscas? Que não é a fazer-lhe frente que o levo onde desejo? Serei violenta, repito. Se não o fizer entender que existem regras pela via da palavra, usarei dos meios que tiver ao meu alcance.
Não tem idade para levar um par de estalos? Não Pedro? Que não lhos dei em criança, que fui permissiva,
sabes que fui mãe e pai (andavas sempre ausente, bem sei que a trabalhar Pedro, bem sei) … mas que querias, Pedro? eduquei-os como achei melhor, mimei demais, admito. Mas quando é que ele se desviou do caminho, lembras? Não sei, eu não sei… ainda há tão pouco tempo para ele eu era a mãe mais linda
és tão perfeita, mãe...
e tinha caracóis louros,
e era o meu bebé...
...que se ocultava do mundo na barra da minha saia…

A culpada sou eu, Pedro, que, mais uma vez, não soube dosear os afectos e ele decidiu que a única forma de enfrentar o dia era vestir-se de noite. Ele, porque é frágil, porque é sensível, usa uma máscara. É gótico… Pode ser lá fora, mas aqui, Pedro, não tem de que se esconder. Amar é aceitar,
terá de se mostrar, a mim, a ti, aos irmãos. Terá de conviver e partilhar, a começar pela partilha na hora das refeições. São sagradas…
Por tudo isto, acredita, não vou aceitar nem uma vez mais que não desça e se apresente, como sempre o ensinei, penteado e de mãos lavadas, à mesa do almoço…
Não à violência. Concordo,
mas
lembro-te que, quando um filho nasce e não grita, não chora, recebe o primeiro chapadão de sua vida. e respira então...
(não, não viste o Rui nascer, não estavas perto, bem sei... mas foi assim que aconteceu... depois respirou e aninhei-o contra o meu corpo ... e tudo fica bem quando respira em cadência com a turbulência deste mundo ...)
Pode ser que tenhas razão… admito que sim, todavia, Pedro, mais do que um abanão de mãe, um silêncio de pai não será também anti-pedagógico?
...Ainda te recordas o meu nome, Pedro? O meu nome, sim, Maria como todas as mulheres, Maria Madalena, pecadora confessa. Pois bem, por amor pecarei…
Chega, estás a atazanar-me as ideias, faz o que te aprouver, depois não te queixes...
Farei...

Onde está o Rui Pedro?
No quarto, onde achas que está? Chama-o, por favor, o almoço está pronto, é Domingo, e detesto que o que fiz com tanto carinho, fique impróprio para consumo, por horas esquecidas antes de ser servido. Diz-lhe que acabei de fazer o arroz de feijão que tanto gosta… malandrinho… com filetes de pescada. Fi-las no forno, não têm gordura…
Deixa-o lá, ele não vai descer. Come quando quiser, estou farto de cenas…
Pedro, por favor, ou sobes tu, ou subo eu… o Rui almoça connosco hoje, ou eu não me chame Maria Madalena… assim não pode ser.

Todos os cheiros e a casa. O silêncio conspurcado da casa; O silêncio onde os medos são confrontos e os confrontos
absolutamente
desnecessários
e os passos, se desejam, preferencialmente, que sejam de lã
não acordem o no mármore
frio.
Sabe bem ser concordante. O difícil, sabes, é dizer não. O sim, o abanar da cabeça no sentido da gravidade é tarefa simples…
Subo. Estou por tudo. Tudo é, e será sempre, melhor ... que o nada…

Rui, desce por favor…
Os olhos abertos, aqueles olhos onde reside
a apatia, a necessidade de confrontar
alguém. Não, Rui, não… não me provoques; desce, Rui, por favor… não vou desistir de ti, nunca. Tu sabes disso. Nem que para tanto hoje conheças o inverso de mim. Conheças o meu lado mais negro. O meu lado escuro…
Rui, por favor. O arroz está no ponto, como gostas, solto, malandrinho. As filetes fi-las no forno, sobre um papel vegetal, não estão gordurentas, mas, se preferires, comes só o arroz….
se dizes que queres ser vegetariano, não vejo inconveniente. O feijão é quanto basta,
os teus irmãos já estão na mesa e o teu pai acabou de abrir o vinho branco. Podes beber um bocadinho, não tem mal… afinal bebes cerveja, não é meu filho? …

Rui, desliga o jogo, coloca em pausa, mas por favor …

O silencio da casa. A porta fechada. E a voz do ventre, e a luta - agora ou nunca, Madalena- , o vento contra o chinelo, o vento na portada
a havaiana…

E as pernas, e os braços “no ventre uma caravela” … o mundo em espera, os estilhaços
os vidros
cristais e bruma (os teus e os meus olhos)
Agora ou nunca, Madalena, é a tua luta contra a indiferença, contra as trevas, se te enfrentar, enfrentará a mundo,
         e as lágrimas, por fim.

Detesto-te, mãe… detesto-te, ouviste, Tu não me podias ter feito isto, tu não, nunca me bateste…
Detesto-te mãe, detesto-te… não podias mãe… não podias. A cadência, a armadilha dos teus braços, meu filho, tão pequena sou e o teu metro e oitenta, como um muro, um precipício,
uma roda de feira
uma montanha russa

Também tenho medo do escuro, filho, da velocidade, do abismo,
agarra-me, filho,
tu és luz, por vezes um vulcão enfurecido… e eu
sou a terra, a terra que te pariu, sabias? a fenda por onde explodiste, botão de carne, indefeso, e que eu, por não saber mais do que aquilo que fiz,
fragilizei. Era marinheira em primeira viagem… errei, Rui, talvez,
o mundo não é como to pintei nos contos que te contava onde havia uma fada boa
um menino Henrique, sempre bondoso,
e uma mãe enferma ...
mas
Amo-te, amo-te, amo-te…
e estou aqui e podes bater-me se desejares, não me defendo, não sou enferma …
mas tu
és, e serás sempre, bondoso, especial, e
e nenhum negro me fará desistir de ti, nunca;
nunca, entendes? jamais,
antes desistiria de mim … por favor, Rui, vai lavar as mãos, a cara. Espero por ti na mesa…
Com ou sem filetes, meu filho?…
Com filetes…

O Rui?
Desce já, vou começar a servir os pratos, sentem-se meninos, o vosso irmão está apenas a guardar o jogo… Pedro, queres fazer o favor de servir vinho branco ao Rui?…

        Duas vezes Maria. E ela ali, naquele altar de Maio...

***
Fotografia da autora, Parque das Nações, Lisboa

segunda-feira, 1 de março de 2010

Pelos Caminhos de Santiago, Obá.



Os caminhos de Santiago levam-nos a um Santo, que não está em Portugal - ouvira um dia ao Mestre. (1)

Para onde nos levam os caminhos que procuramos?

Naquela manhã, a jovem feiticeira, de novo procurou o Mestre. Não sabia se os caminhos que demandava dentro de si mesma, a conduziam a algum lugar. Recordava-se vagamente de uma história de criança: “Alice no País das Maravilhas”. Sentia-se um pouco assim. Tal como Alice, construíra um mundo onírico, sem lógica aparente - o seu mundo. Dava-se conta de quão incoerente era a seu inconsciente,

... e a voz de dentro “A procura leva-nos por caminhos inusitados..”

Obá, assim se chamava a jovem feiticeira, era uma brava batalhadora. Agressiva, em certas ocasiões, e por isso nem sempre compreendida. O seu espírito aguerrido não raras vezes lhe trazia experiências infelizes e amargas. O zelo além do necessário, um dos seus maiores pecados, balançado com uma grande dedicação a causas, às vezes perdidas, a ideais. Tinha o seu lado ingénuo, principalmente em relação ao amor e as amizades. Esta era uma das razões pelas quais, tinha voltado a procurar o Mestre. As amizades e os amores à sua volta, haviam-na traído. Não poderia errar de novo na busca do Caminho para Santiago. Havia-se disposto, uma vez mais, a ousar, com determinismo, desprendimento e vontade, experimentar seus próprios limites. Até sangrar…

Peregrinar é um acto de Fé!
Com fé havia entrado para Universidade da Feitiçaria.
Certo dia ouvira uma outra Feiticeira mais velha dizer: “Sendo um Caminho, pressupõe um itinerário, mas não se esgota nele.”

O que estava ali a ser dito? Reflectiu: para que seja criado um caminho, teremos de lhe associar uma intenção, uma missão, um objectivo, certo? Mas como esquadrinhar em nós esses valores?
Pensou uma vez mais, uma outra vez, e encontrou, dentro de si respostas – a resposta está sempre (ou quase sempre, dentro de nós). Procurar os Caminhos de Santiago implicam a busca interior, o enriquecimento espiritual e cultural, e, claro, estes adquiridos só são possíveis com grande motivação… Esforço!

Amante e adepta de cicloturismo, Obá, entendia este desporto como libertador, dado que lhe permitia um contacto directo com a Natureza. Então, decidiu que este podia ser o meio de lá chegar – fazendo aquilo que tanto prazer lhe dava. Cicloturismo...

Pelo caminho, na senda de chegar ao Santo, sem pressas, iria aprofundando conhecimentos de história medieval. Era genuinamente interessada na diferença conseguida pela via cultural. Determinou que teria de traçar um mapa de interesses: igrejas, mosteiros, castelos... Da paisagem natural ao património construído, um mundo à sua espera.

Era Primavera, a Páscoa ao lado. A quaresma, a expiação do pecado ...
Haviam-lhe prevenido de igrejas dotadas de uma força energética inexplicável e falado de teorias - diversas -, capazes de explicar tal poder: localização geodésica, tipo de arquitectura, vitrais em forma de pentagrama, etc. ... Eunate e a de Castrojeriz, exemplos clássicos...

Decidiu que as visitaria. Levaria um livro de notas. Registaria tudo o que lhe ocorresse... o que sentisse, o que vivesse. Aquele caminho era um ponto de encruzilhada na história dos povos e das religiões – diversidade e multiculturalismo, isso faria toda a diferença... Igreja católica na Europa, mas também, vestígios cruciais das civilizações romana, árabe e judaica em Portugal e Espanha.

Reflectiu de novo. Então não lhe falara um dia o Mestre, dos três pilares básicos da estrutura de qualquer caminho? - espiritual, desportivo ou cultural- , recordava agora, claramente!
Mas, intuía, o Caminho que conduzia a Santiago teria que ser mais do que isso. Por “tão pouco”, o mestre não falaria – era parco de palavras!

“Os caminhos de Santiago levam-nos a um Santo, que não está em Portugal.”

Teriam de haver outros motivos. Reflectiu uma vez mais, revendo as palavras, uma a uma. No sopé do monte, onde se encontrava, sentia o vento e o cheiro das crisálias prontas a romper dos verbos. Borboletas faziam-lhe cócegas no baixo ventre ainda intacto de Alice no País das Maravilhas.
A Escola da Feitiçaria era um lugar de eleitos. Só quem possuísse qualidades inatas é que atingiria o fim a que se havia proposto. E Obá, tal como Alice, queria ser uma das eleitas.

“Num Mundo de passantes, quem passa leva sempre alguma coisa, e quem fica, fica sempre com mais alguma coisa” - dissera-lhe a feiticeira mais velha, sua amiga. Reverberava de novo... atentava nos valores...
Desvendara outro dos enigmas do Caminho de Santiago:
A partilha! Para que possamos partilhar, temos de estar abertos à partilha – ao acolhimento, à hospitalidade.
“A rota que cada um de nós faz, outros atrás já a calcorrearam…”
Desvendara um outro enigma: Importava ouvir o que os outros aprenderam, as lições empíricas que retiraram das suas longas caminhadas, feitas na fé, na tradição.
Não fora por acaso que escolhera aquela escola. Todos os que ali haviam estado antes, lhe haviam falado de um caminho especial, depositado em cada palmo de pedra e pó - no fundo, tratava-se de um rota muito especial, da época Medieval.

O rosto iluminou-se. Aos poucos, intrinsecamente, ia encontrando respostas! Solidariedade, companheirismo, fé.
Solidariedade (tanto que ouvira já falar deste tema)...;
Fé... na obtenção do prémio: O Certificado de Fé. O Diploma de um Curso;
Companheirismo. Sem um ombro amigo, sem alguém a quem pedir ajuda, se necessário, seria certamente muito mais difícil trilhar rotas, nem sempre constantes no grau de dificuldade, previsíveis, mesuráveis. Acrescia o do facto, inquestionável, de que, a cada momento, difeririam em cada um, energias próprias... Seguramente um caminho complicado - altos e baixos, trilhas nas matas, emoções, condições psicossomáticas -, enfim, um caminho exigente, complexo. Exigia a reunião de todos os esforços... Dias haveriam de chegar em que, os pés, gotejariam de tanto andar.
Aí, Obá, socorrer-se-ia dos seus saberes e de conhecimentos místicos e encontraria regenerações. Socorrer-se-ia de competências adquiridas nas suas vidas - a actual e as anteriores - , as que sabia já ter feito, noutros tempos, diferentes deste. E, pressentia, não estaria só. “Nunca se está só, Oba, recorda...”
Formar-se-iam grupos que marchariam juntos, dia após dia, centenas de quilómetros, de um percurso total de cerca 800 km.
Seria, com toda a certeza, um caminho de privações: dormir no chão, bolhas nos pés, tendinites e dores lombares devido à carga das mochila, eram, entre outras, possibilidades das mais conhecidas. Mas Obá, não temia, afoita!

Caminhos de Santiago. No início, à altura, simples caminhos rasgados entre as sarças dos montes e dos vales, por vezes (mal) frequentados por larápios e malandrins. Caminhos capazes de tornar a vida do caminhante num inferno, antes de chegar ao seu destino, situado junto ao túmulo do apostolo Santiago, lá longe, na terra galega de Santiago de Compostela.

O tempo.
O tempo tudo acirra ou cicatriza, o maior dos cineastas… - os mesmíssimos caminhos que se foram humanizando ao longo de séculos de uso e se transformaram em estradas, mais tarde em ruas calcetadas, largas avenidas de vilas e cidades.

Obá pensava: - nós, simples mortais num tempo em que nos sentimos mais ligados às coisas terrenas do que aos mistérios da fé, pura e simplesmente deixamos cair no esquecimento a riqueza desse património cultural e natural...
e incidia, na palavra
…onde Peregrinar é um acto de Fé! É um Caminho e como tal pressupõe um itinerário, mas não se esgota nele.
tem que se lhe associar uma intenção e um objectivo, e estes dois, alimentar-se-ão per si, da motivação. Despertarão a busca interior, promovendo assim o enriquecimento espiritual e cultural.

Era então tudo isto! E assim pensando, jubilava, regozijava. Estava feliz, estava a entender a mensagem do seu Mestre.

De novo, introspectiva: - entre nós, cristãos, as Peregrinações mergulham as suas raízes no Antigo Testamento, no Êxodo do povo eleito para a Terra Prometida. Jesus Cristo peregrinou também a Jerusalém. É a Igreja, que, desde os primeiros tempos ,promove o culto dos lugares santos, que fomenta similarmente as Peregrinações - Jerusalém, Roma e Santiago foram os grandes centros da cristandade que mobilizaram inúmeras gerações de peregrinos, como ainda hoje acontece com Lourdes, Tita ou Czestochowa...,

... mas se - prosseguia em reflexão ávida da verdade -, Jerusalém e Roma foram os grandes pólos de difusão do cristianismo, o primeiro por ser a Cidade Santa onde o Filho de Deus se entregou para redimir a Humanidade e o segundo pela sua distinção como Solo Pontifício, a Santiago de Compostela cabe o privilégio de ter sido, ao longo de todo o segundo milénio, a grande confluência da rede viária europeia por onde correu a pregação do Evangelho, que é a base civilizacional deste velho continente, e, por isto, podemos mesmo afirmar que os Caminhos de Santiago são um denominador comum da cultura europeia. Pelo que, numa Europa que mais que nunca se quer forte e coesa, falando uníssono em todas as línguas, estes itinerários, são espaços públicos de convergência e harmonia, e devam ser, profusamente, respeitados e promovidos. Neles, qualquer caminhante se sentirá um cidadão do Mundo, o que lhe dá a oportunidade de perspectivar as suas convicções num sentido ecuménico de abertura e de tolerância.

Tolerância …
Cerrava agora os olhos cansada. Sentia ter conseguido decifrar o enigma do mestre.
O que procuramos nos Caminhos de Santiago?
“Um quase tudo... um tudo mesmo, diria!”.

E assim pensando, sentada numa árvore, na copa redonda de uma árvore, Obá adormeceu e sonhou ... Era caminhante, errática caminhante... Borboleta de asas queimadas, por vezes. Mas caminhante, sempre!
Do que se lembrava…

***
Imagem da net, autor desconhecido
(1) Professor Adriano Moreira, em conferência sobre a internacionalização do ensino superior público ...

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...