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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 10 de março de 2010

Três vezes Maria.


Corria de boca em boca como o vento em dia de temporal. E a todas abria num
Ahhhh,
de espanto.
Não acredito, podes acreditar, a Maria da Anunciação, a mulher do Frederico Navalha matou-se, pôs fim à vida com seiscentos e cinco forte
Aquele que se usa nas colheitas? Aquele com que se engodam os ratos?
Esse
Valha-nos Deus, o mundo está perdido. Com uma vida tão bonita, de casa posta de tudo quanto é bom, do melhor, bem arreada de ouros e de unhas feitas, aquilo bem se via que não era menina de andar aos campos…
ou educar filhos ...
E os filhos, se bem me lembras? ...A mulher lá pensou nos filhos? Pensou foi nela, a magana,
Os filhos, bem se vê, hão-de ficar com o pai, o pior é o mais velho que não tem os cinco alqueires bem medidos e que se pega com todos,
Dizem que o pai o renega, que nem se acredita que é filho dele…
Hom’essa, é a cara do Frederico sem tirar nem pôr, ou melhor dizendo, da raça do Frederico, de que há aqui na aldeia memória: sisudos, secos por fora e por dentro, olhar sempre mais além que as Lezírias, lá onde os mouros se achegaram da costa, em desconfiança, à família da Maria Anunciação é que ele não pendeu, gente tão alegre e afagadeira, e ela? Tu te alembras? Quando enchia o recinto da dança da sua graça? Era uma mulher e pêras…
Entre dentes …
ainda é…
E isso que importa agora? Está morta, matou-se e se deixou porquê, ninguém sabe, que o corpo quem no encontrou foi a Maria Benta que lá faz a lidação. Estava no pátio, no meio dos lixos que a ventania atiçou como cães contra ela, folhas de figueira, de nespereira, de oliveira (até na boca as tinha, homem…) estava encurvada entre a corte dos porcos e o galinheiro… A Maria Benta até já tinha dito de conversa à minha Tomázia, a senhora não anda bem, para ela, que era tão opiniosa, que era de tantos porquês na lida, agora tanto se lhe dar, como não, tanto se importar que o vidro se embace como que brilhe, que a casa cheire a limpa como não cheire a nada;, alguma coisa se passa;  dantes queria cera posta por detrás dos móveis, imagina ó Tomázia, se isso tinha sentido, cera daquela antiga, posta de quinze em quinze dias, móveis desarrimados e tudo limpo e encerado, dos rodapés até às calhas das varandas. Dizia que, por serem de estilo moderno, não se podiam encerar os móveis pela frente, mas que não prescindia do cheiro a limpo do antigamente. E os vidros, Tomázia? Obrigava-me a lavá-los mesmo quando chovia, dizia que se fossemos a pensar nisso, nunca se fazia nada, porque tudo se haveria de sujar…
E os lençóis ó comadre Tomázia? Tu julgas que mos deixava passar assim entrementes como nós fazemos para nosso governo? Uma passadela de “dá-lhe uma e promete-lhe outra?”, não, até se arriçava toda,
Maria Benta, as coisas fazem-se a preceito. Uma tolha turca por baixo e as rendas engomadas do avesso, e os bordados, a mesma coisa,
as toalhas de mesa então, quando vinha alguém de fora para jantar (coisa rara que o senhor Navalha é pouco dado a sociais), obrigava-me a botar-lhe clara de ovo como se fazia antigamente para os toucados das enfermeiras … em tudo era assim, até um dia, que nem me alembro bem aquando, não se levantou da cama e não me deu ordens, nem de que fazer de almoço, nem janta, mas acho, pensando bem, que tinha ido com o filho à psicóloga no dia anterior, ou lá que é isso, disse-mo o caseiro, que a viu a chorar, que o Sr. Frederico quando ela chegou com o menino Valério a tratou de vergonhas, que até disse que, se o miúdo era atrasado, a culpa era dela, que o amaricava que não fazia dele um homem e o metia debaixo das saias, força de expressão bem se vê, e que do mais novo ele se encarregaria de o fazer homem e, noite feita, o montou no tractor e o levou para o campo e a criança nem foi à escola na manhã seguinte, desde esse dia, ó Tomázia, a minha senhora deixou de reluzir a casa, deixou de se interessar pela cera das abelhas e até pelos bordados e, olha, para falar verdade, desleixei-me um bocado …, ela parecia que não via ninguém, passava os dias sem dar salvação, e nos dias que o menino se passava dos miolinhos e fazia aquelas travessuras então assombrava-se fantasmada como o veludo negro aquela casa,

mas esta agora, deixou-me aparvalhada, por esta não esperava, atão desistiu dos meninos? … e etc…, disse-me a minha Tomázia quando os sinos tocaram a rebate, recordando-me a conversa que...

já não sei por bem as falas de pé, compadre Ezequiel. Mas o que importa é que se matou com seiscentos e cinco forte, que deixou dois filhos, que não tinha razão nenhuma, ouviu bem, nenhuma, que não lhe faltava conforto nem meios, que ainda por cima era bem arrevesada, que era um bocadão de mulher, um vulcão a bem dizer, que punha a cabeça de todos à volta, e que, se matou na flor da idade, que o marido ...

... compadre, dizem que ele a comia, com perdão da palavra, como um animal, que ela gritava, que ela por vezes usava golas altas no verão…,
E depois? Não dizem que é moda? Camisolas de gola alta sem mangas? O que tem isso a ver com a história da morte? Ora não querem lá ver que um gajo não pode comer a mulher como lhe apetece?
… que a sufocava, que um dia até a comeu nas escadas, dobrou-a pela cinta e vestida e tudo, usou-se dela…, que dizia palavrões, que o filho, o atrasado, os viu e desde esse dia, andava sempre atrás da mãe, e que por isso é que se tornou naquele maricas que se sabe, sempre a apanhar flores para ela, sempre a dar-lhe abraços e ela a estragá-lo,
agora bem pode ir levar-lhas ao cemitério, que ninguém achará diferença, mas ó compadre Ezequiel, um miúdo andar de florinhas na mão, a fazer macacadas, de joelho no chão,
sou o teu príncipe, sou o teu pajem, mamã … e ela a rir, e não o mandar ser homem, dá no que dá… e olhe que o outro, apesar dos ensinamentos do pai, ia pelo mesmo caminho, esse era de viola em punho, a cantar para ela…
Menina estás à janela, com o teu cabelo ao vento
sou um trovador, que achas, mamã? Tenho futuro?…
E ela? Colocava-se mesmo à janela, diz a Maria Benta que dizia que estava a fazer teatro com as crianças … mariquices, bem se vê …
Agora matou-se, vá-se lá perceber, se afinal gostava dos filhos. Mentes fracas, mulheres que não têm juízo... O Frederico ‘tá um trapo, nem parece o mesmo homem, dizem que o viram a chorar e que tinha flores nas mãos, mas só pode ter sido porque lhas deram, que ele nunca as apanharia para a mulher, nem morta, é homem, não é desses…
antes quebrar que torcer, benzó Deus. Puta que a pariu, que amaricou os filhos,

Ó compadre, diga-me uma coisa, a Maria Benta nunca …
Chega, homem, a culpa é dela, que se matou e não pensou na honra do marido, todos a esticarem o dedo, nem nos catraios, e agora vossemecê insiste em que ele assim e mais assado? Que a comia, que a esquecia dias e dias sem uma palavra quando ia fazer as campanhas do tomate nos campos? Que, no tempo do melão levava os ranchos de mulheres e por lá se aviava? Ora, compadre, homem é homem, e bicho é bicho. Outra Maria se há-de anunciar, verá…
A culpa é dela... uma Maria vai com as outras, é o que é... uma pecadora...

... compadre, e a justiça Salomónica? quem ama renuncia, e, digo eu, talvez ela achasse que a culpa era mesmo dela e ...
Ora, ora, e vossemecê  a dar-lhe e a burra a fugir ...

***
Os sinais eram evidentes. Só tu não vias. Ou não querias ver. Era mais cómodo ignorar o que avançava íngreme na mente de teu filho. Os nossos filhos são sempre meninos. Preferencialmente perfeitos. Sem crises
sem parapeitos perigosos
sem atavios de mente
sem unhas negras

Os sinais eram evidentes. Não que tenha em cabeça que pintar unhas de negro, vestir de negro e viver fechado dentro do quarto seja sintomático de algo não está bem, mesmo quando tudo isto se passa aos quinze anos, mas Pedro, não seria hora de fazeres frente ao teu filho e teres com ele aquela conversa que se impunha?

O dinheiro não chega, Pedro. Sei que és um pai dedicado, que não lhe faltas com nada, que mal ele te pede seja o que for tu, sempre tão ocupado, tão assoberbado com trabalho, com reuniões até altas horas, com trabalhos infindáveis, atravessas a cidade de lés-a-lés, moves o céu e o inferno e dás-lhe o que ele quer. Eu não sou assim. Tens razão, somos diferentes Pedro, muito diferentes mesmo. Não lhe facilito a vida, não lhe faço as vontades todas, sou interrogativa, sou chata, questiono-o sobre o dia a dia, sobre o que fez e não fez, mesmo sabendo que as respostas são evasivas, que raramente ultrapassarão a meia dúzia de palavras, sei que o fosso se agudiza e que, a cada hora comunica menos, sei que os adolescentes passam crises, mas sei Pedro, que não desisto dele, que o amo (e nem duvido que o ames) mais que qualquer coisa neste mundo, Pedro, e que, se para o despertar para a vida, para o acordar para o sol que nasce em cada madrugada for necessário ser violenta, serei. É anti-pedagógico? Com vinagre não se apanham moscas? Que não é a fazer-lhe frente que o levo onde desejo? Serei violenta, repito. Se não o fizer entender que existem regras pela via da palavra, usarei dos meios que tiver ao meu alcance.
Não tem idade para levar um par de estalos? Não Pedro? Que não lhos dei em criança, que fui permissiva,
sabes que fui mãe e pai (andavas sempre ausente, bem sei que a trabalhar Pedro, bem sei) … mas que querias, Pedro? eduquei-os como achei melhor, mimei demais, admito. Mas quando é que ele se desviou do caminho, lembras? Não sei, eu não sei… ainda há tão pouco tempo para ele eu era a mãe mais linda
és tão perfeita, mãe...
e tinha caracóis louros,
e era o meu bebé...
...que se ocultava do mundo na barra da minha saia…

A culpada sou eu, Pedro, que, mais uma vez, não soube dosear os afectos e ele decidiu que a única forma de enfrentar o dia era vestir-se de noite. Ele, porque é frágil, porque é sensível, usa uma máscara. É gótico… Pode ser lá fora, mas aqui, Pedro, não tem de que se esconder. Amar é aceitar,
terá de se mostrar, a mim, a ti, aos irmãos. Terá de conviver e partilhar, a começar pela partilha na hora das refeições. São sagradas…
Por tudo isto, acredita, não vou aceitar nem uma vez mais que não desça e se apresente, como sempre o ensinei, penteado e de mãos lavadas, à mesa do almoço…
Não à violência. Concordo,
mas
lembro-te que, quando um filho nasce e não grita, não chora, recebe o primeiro chapadão de sua vida. e respira então...
(não, não viste o Rui nascer, não estavas perto, bem sei... mas foi assim que aconteceu... depois respirou e aninhei-o contra o meu corpo ... e tudo fica bem quando respira em cadência com a turbulência deste mundo ...)
Pode ser que tenhas razão… admito que sim, todavia, Pedro, mais do que um abanão de mãe, um silêncio de pai não será também anti-pedagógico?
...Ainda te recordas o meu nome, Pedro? O meu nome, sim, Maria como todas as mulheres, Maria Madalena, pecadora confessa. Pois bem, por amor pecarei…
Chega, estás a atazanar-me as ideias, faz o que te aprouver, depois não te queixes...
Farei...

Onde está o Rui Pedro?
No quarto, onde achas que está? Chama-o, por favor, o almoço está pronto, é Domingo, e detesto que o que fiz com tanto carinho, fique impróprio para consumo, por horas esquecidas antes de ser servido. Diz-lhe que acabei de fazer o arroz de feijão que tanto gosta… malandrinho… com filetes de pescada. Fi-las no forno, não têm gordura…
Deixa-o lá, ele não vai descer. Come quando quiser, estou farto de cenas…
Pedro, por favor, ou sobes tu, ou subo eu… o Rui almoça connosco hoje, ou eu não me chame Maria Madalena… assim não pode ser.

Todos os cheiros e a casa. O silêncio conspurcado da casa; O silêncio onde os medos são confrontos e os confrontos
absolutamente
desnecessários
e os passos, se desejam, preferencialmente, que sejam de lã
não acordem o no mármore
frio.
Sabe bem ser concordante. O difícil, sabes, é dizer não. O sim, o abanar da cabeça no sentido da gravidade é tarefa simples…
Subo. Estou por tudo. Tudo é, e será sempre, melhor ... que o nada…

Rui, desce por favor…
Os olhos abertos, aqueles olhos onde reside
a apatia, a necessidade de confrontar
alguém. Não, Rui, não… não me provoques; desce, Rui, por favor… não vou desistir de ti, nunca. Tu sabes disso. Nem que para tanto hoje conheças o inverso de mim. Conheças o meu lado mais negro. O meu lado escuro…
Rui, por favor. O arroz está no ponto, como gostas, solto, malandrinho. As filetes fi-las no forno, sobre um papel vegetal, não estão gordurentas, mas, se preferires, comes só o arroz….
se dizes que queres ser vegetariano, não vejo inconveniente. O feijão é quanto basta,
os teus irmãos já estão na mesa e o teu pai acabou de abrir o vinho branco. Podes beber um bocadinho, não tem mal… afinal bebes cerveja, não é meu filho? …

Rui, desliga o jogo, coloca em pausa, mas por favor …

O silencio da casa. A porta fechada. E a voz do ventre, e a luta - agora ou nunca, Madalena- , o vento contra o chinelo, o vento na portada
a havaiana…

E as pernas, e os braços “no ventre uma caravela” … o mundo em espera, os estilhaços
os vidros
cristais e bruma (os teus e os meus olhos)
Agora ou nunca, Madalena, é a tua luta contra a indiferença, contra as trevas, se te enfrentar, enfrentará a mundo,
         e as lágrimas, por fim.

Detesto-te, mãe… detesto-te, ouviste, Tu não me podias ter feito isto, tu não, nunca me bateste…
Detesto-te mãe, detesto-te… não podias mãe… não podias. A cadência, a armadilha dos teus braços, meu filho, tão pequena sou e o teu metro e oitenta, como um muro, um precipício,
uma roda de feira
uma montanha russa

Também tenho medo do escuro, filho, da velocidade, do abismo,
agarra-me, filho,
tu és luz, por vezes um vulcão enfurecido… e eu
sou a terra, a terra que te pariu, sabias? a fenda por onde explodiste, botão de carne, indefeso, e que eu, por não saber mais do que aquilo que fiz,
fragilizei. Era marinheira em primeira viagem… errei, Rui, talvez,
o mundo não é como to pintei nos contos que te contava onde havia uma fada boa
um menino Henrique, sempre bondoso,
e uma mãe enferma ...
mas
Amo-te, amo-te, amo-te…
e estou aqui e podes bater-me se desejares, não me defendo, não sou enferma …
mas tu
és, e serás sempre, bondoso, especial, e
e nenhum negro me fará desistir de ti, nunca;
nunca, entendes? jamais,
antes desistiria de mim … por favor, Rui, vai lavar as mãos, a cara. Espero por ti na mesa…
Com ou sem filetes, meu filho?…
Com filetes…

O Rui?
Desce já, vou começar a servir os pratos, sentem-se meninos, o vosso irmão está apenas a guardar o jogo… Pedro, queres fazer o favor de servir vinho branco ao Rui?…

        Duas vezes Maria. E ela ali, naquele altar de Maio...

***
Fotografia da autora, Parque das Nações, Lisboa

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...