Os caminhos de Santiago levam-nos a um Santo, que não está em Portugal - ouvira um dia ao Mestre. (1)
Para onde nos levam os caminhos que procuramos?
Naquela manhã, a jovem feiticeira, de novo procurou o Mestre. Não sabia se os caminhos que demandava dentro de si mesma, a conduziam a algum lugar. Recordava-se vagamente de uma história de criança: “Alice no País das Maravilhas”. Sentia-se um pouco assim. Tal como Alice, construíra um mundo onírico, sem lógica aparente - o seu mundo. Dava-se conta de quão incoerente era a seu inconsciente,
... e a voz de dentro “A procura leva-nos por caminhos inusitados..”
Obá, assim se chamava a jovem feiticeira, era uma brava batalhadora. Agressiva, em certas ocasiões, e por isso nem sempre compreendida. O seu espírito aguerrido não raras vezes lhe trazia experiências infelizes e amargas. O zelo além do necessário, um dos seus maiores pecados, balançado com uma grande dedicação a causas, às vezes perdidas, a ideais. Tinha o seu lado ingénuo, principalmente em relação ao amor e as amizades. Esta era uma das razões pelas quais, tinha voltado a procurar o Mestre. As amizades e os amores à sua volta, haviam-na traído. Não poderia errar de novo na busca do Caminho para Santiago. Havia-se disposto, uma vez mais, a ousar, com determinismo, desprendimento e vontade, experimentar seus próprios limites. Até sangrar…
Peregrinar é um acto de Fé!
Com fé havia entrado para Universidade da Feitiçaria.
Certo dia ouvira uma outra Feiticeira mais velha dizer: “Sendo um Caminho, pressupõe um itinerário, mas não se esgota nele.”
O que estava ali a ser dito? Reflectiu: para que seja criado um caminho, teremos de lhe associar uma intenção, uma missão, um objectivo, certo? Mas como esquadrinhar em nós esses valores?
Pensou uma vez mais, uma outra vez, e encontrou, dentro de si respostas – a resposta está sempre (ou quase sempre, dentro de nós). Procurar os Caminhos de Santiago implicam a busca interior, o enriquecimento espiritual e cultural, e, claro, estes adquiridos só são possíveis com grande motivação… Esforço!
Amante e adepta de cicloturismo, Obá, entendia este desporto como libertador, dado que lhe permitia um contacto directo com a Natureza. Então, decidiu que este podia ser o meio de lá chegar – fazendo aquilo que tanto prazer lhe dava. Cicloturismo...
Pelo caminho, na senda de chegar ao Santo, sem pressas, iria aprofundando conhecimentos de história medieval. Era genuinamente interessada na diferença conseguida pela via cultural. Determinou que teria de traçar um mapa de interesses: igrejas, mosteiros, castelos... Da paisagem natural ao património construído, um mundo à sua espera.
Era Primavera, a Páscoa ao lado. A quaresma, a expiação do pecado ...
Haviam-lhe prevenido de igrejas dotadas de uma força energética inexplicável e falado de teorias - diversas -, capazes de explicar tal poder: localização geodésica, tipo de arquitectura, vitrais em forma de pentagrama, etc. ... Eunate e a de Castrojeriz, exemplos clássicos...
Decidiu que as visitaria. Levaria um livro de notas. Registaria tudo o que lhe ocorresse... o que sentisse, o que vivesse. Aquele caminho era um ponto de encruzilhada na história dos povos e das religiões – diversidade e multiculturalismo, isso faria toda a diferença... Igreja católica na Europa, mas também, vestígios cruciais das civilizações romana, árabe e judaica em Portugal e Espanha.
Reflectiu de novo. Então não lhe falara um dia o Mestre, dos três pilares básicos da estrutura de qualquer caminho? - espiritual, desportivo ou cultural- , recordava agora, claramente!
Mas, intuía, o Caminho que conduzia a Santiago teria que ser mais do que isso. Por “tão pouco”, o mestre não falaria – era parco de palavras!
“Os caminhos de Santiago levam-nos a um Santo, que não está em Portugal.”
Teriam de haver outros motivos. Reflectiu uma vez mais, revendo as palavras, uma a uma. No sopé do monte, onde se encontrava, sentia o vento e o cheiro das crisálias prontas a romper dos verbos. Borboletas faziam-lhe cócegas no baixo ventre ainda intacto de Alice no País das Maravilhas.A Escola da Feitiçaria era um lugar de eleitos. Só quem possuísse qualidades inatas é que atingiria o fim a que se havia proposto. E Obá, tal como Alice, queria ser uma das eleitas.
“Num Mundo de passantes, quem passa leva sempre alguma coisa, e quem fica, fica sempre com mais alguma coisa” - dissera-lhe a feiticeira mais velha, sua amiga. Reverberava de novo... atentava nos valores...
Desvendara outro dos enigmas do Caminho de Santiago:
A partilha! Para que possamos partilhar, temos de estar abertos à partilha – ao acolhimento, à hospitalidade.
“A rota que cada um de nós faz, outros atrás já a calcorrearam…”
Desvendara um outro enigma: Importava ouvir o que os outros aprenderam, as lições empíricas que retiraram das suas longas caminhadas, feitas na fé, na tradição.
Não fora por acaso que escolhera aquela escola. Todos os que ali haviam estado antes, lhe haviam falado de um caminho especial, depositado em cada palmo de pedra e pó - no fundo, tratava-se de um rota muito especial, da época Medieval.
O rosto iluminou-se. Aos poucos, intrinsecamente, ia encontrando respostas! Solidariedade, companheirismo, fé.
Solidariedade (tanto que ouvira já falar deste tema)...;
Fé... na obtenção do prémio: O Certificado de Fé. O Diploma de um Curso;
Companheirismo. Sem um ombro amigo, sem alguém a quem pedir ajuda, se necessário, seria certamente muito mais difícil trilhar rotas, nem sempre constantes no grau de dificuldade, previsíveis, mesuráveis. Acrescia o do facto, inquestionável, de que, a cada momento, difeririam em cada um, energias próprias... Seguramente um caminho complicado - altos e baixos, trilhas nas matas, emoções, condições psicossomáticas -, enfim, um caminho exigente, complexo. Exigia a reunião de todos os esforços... Dias haveriam de chegar em que, os pés, gotejariam de tanto andar.
Aí, Obá, socorrer-se-ia dos seus saberes e de conhecimentos místicos e encontraria regenerações. Socorrer-se-ia de competências adquiridas nas suas vidas - a actual e as anteriores - , as que sabia já ter feito, noutros tempos, diferentes deste. E, pressentia, não estaria só. “Nunca se está só, Oba, recorda...”
Formar-se-iam grupos que marchariam juntos, dia após dia, centenas de quilómetros, de um percurso total de cerca 800 km.
Seria, com toda a certeza, um caminho de privações: dormir no chão, bolhas nos pés, tendinites e dores lombares devido à carga das mochila, eram, entre outras, possibilidades das mais conhecidas. Mas Obá, não temia, afoita!
Caminhos de Santiago. No início, à altura, simples caminhos rasgados entre as sarças dos montes e dos vales, por vezes (mal) frequentados por larápios e malandrins. Caminhos capazes de tornar a vida do caminhante num inferno, antes de chegar ao seu destino, situado junto ao túmulo do apostolo Santiago, lá longe, na terra galega de Santiago de Compostela.
O tempo.
O tempo tudo acirra ou cicatriza, o maior dos cineastas… - os mesmíssimos caminhos que se foram humanizando ao longo de séculos de uso e se transformaram em estradas, mais tarde em ruas calcetadas, largas avenidas de vilas e cidades.
Obá pensava: - nós, simples mortais num tempo em que nos sentimos mais ligados às coisas terrenas do que aos mistérios da fé, pura e simplesmente deixamos cair no esquecimento a riqueza desse património cultural e natural...
e incidia, na palavra
…onde Peregrinar é um acto de Fé! É um Caminho e como tal pressupõe um itinerário, mas não se esgota nele.
tem que se lhe associar uma intenção e um objectivo, e estes dois, alimentar-se-ão per si, da motivação. Despertarão a busca interior, promovendo assim o enriquecimento espiritual e cultural.Era então tudo isto! E assim pensando, jubilava, regozijava. Estava feliz, estava a entender a mensagem do seu Mestre.
De novo, introspectiva: - entre nós, cristãos, as Peregrinações mergulham as suas raízes no Antigo Testamento, no Êxodo do povo eleito para a Terra Prometida. Jesus Cristo peregrinou também a Jerusalém. É a Igreja, que, desde os primeiros tempos ,promove o culto dos lugares santos, que fomenta similarmente as Peregrinações - Jerusalém, Roma e Santiago foram os grandes centros da cristandade que mobilizaram inúmeras gerações de peregrinos, como ainda hoje acontece com Lourdes, Tita ou Czestochowa...,
... mas se - prosseguia em reflexão ávida da verdade -, Jerusalém e Roma foram os grandes pólos de difusão do cristianismo, o primeiro por ser a Cidade Santa onde o Filho de Deus se entregou para redimir a Humanidade e o segundo pela sua distinção como Solo Pontifício, a Santiago de Compostela cabe o privilégio de ter sido, ao longo de todo o segundo milénio, a grande confluência da rede viária europeia por onde correu a pregação do Evangelho, que é a base civilizacional deste velho continente, e, por isto, podemos mesmo afirmar que os Caminhos de Santiago são um denominador comum da cultura europeia. Pelo que, numa Europa que mais que nunca se quer forte e coesa, falando uníssono em todas as línguas, estes itinerários, são espaços públicos de convergência e harmonia, e devam ser, profusamente, respeitados e promovidos. Neles, qualquer caminhante se sentirá um cidadão do Mundo, o que lhe dá a oportunidade de perspectivar as suas convicções num sentido ecuménico de abertura e de tolerância.
Tolerância …
Cerrava agora os olhos cansada. Sentia ter conseguido decifrar o enigma do mestre.
O que procuramos nos Caminhos de Santiago?
“Um quase tudo... um tudo mesmo, diria!”.
E assim pensando, sentada numa árvore, na copa redonda de uma árvore, Obá adormeceu e sonhou ... Era caminhante, errática caminhante... Borboleta de asas queimadas, por vezes. Mas caminhante, sempre!
Do que se lembrava…
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Imagem da net, autor desconhecido
(1) Professor Adriano Moreira, em conferência sobre a internacionalização do ensino superior público ...